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11-2023

Acervo do fotógrafo e ativista negro Januário Garcia será preservado pelo IMS e pela Unicamp

O fotógrafo Januário Garcia (1943-2021) realizou celebradas capas de discos de astros e estrelas da MPB, fotografou peças publicitárias, registrou cenas para o fotojornalismo e ainda foi autor da mais importante documentação do ativismo e da cultura negra brasileira no século 20. Ao unir o exercício da fotografia com a militância política, captou marchas e atos organizados pelo movimento negro, além de personalidades centrais como Lélia González e Abdias Nascimento. Esse amplo e variado acervo será agora preservado e difundido por duas instituições, em uma parceria inédita: o Instituto Moreira Salles (IMS), responsável por armazenar a produção fotográfica do artista, e o Arquivo Edgard Leuenroth (AEL), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que guardará os documentos reunidos por Januário em sua atuação no movimento negro.

Personalidades negras do mundo do samba registradas por Januário: Nelson Sargento, Monarco e Wilson Moreira

Profissionalmente, Januário atuou no mercado publicitário, no fotojornalismo e na indústria fonográfica, assinando capas de álbuns de artistas como Chico Buarque, Caetano Veloso, Belchior, Tom Jobim, Raul Seixas, Fagner, Fafá de Belém, Leci Brandão, entre outros. Paralelamente à profissão de fotógrafo, ocupou cargos de destaque na militância, como o de diretor do Instituto de Pesquisas das Culturas Negras (IPCN). Também foi destaque na edição 283 de Fotografe, em março de 2020.

Capa de famosos discos de Chico Buarque e Belchior feitas por Januário, muito respeitado nesse segmento

Sua atuação tanto como fotógrafo quanto como ativista também fez com que ele viajasse por 27 países, registrando sempre que possível a população negra da diáspora, em nações como Colômbia, Uruguai e Venezuela. Também clicou manifestações culturais como o primeiro ensaio do Bloco Afro Olodum, em 1982. Outro importante conjunto, feito como projeto pessoal, é a série de imagens que registra o cotidiano e a religiosidade dos moradores do Morro do Salgueiro, no Rio, na década de 1980. Também colaborou bastante com o mercado publicitário: em seus trabalhos no meio, atuou para valorizar a imagem de pessoas negras, criticando abertamente peças racistas. Foi um dos responsáveis, inclusive, pela campanha “O negro na publicidade brasileira”, que estimulava a contratação de atores e atrizes negros para comerciais.

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Pingue-pongue no Morro do Salgueiro na década de 1980: fotógrafo documentou a vida nessa comunidade carioca

Januário nasceu em Belo Horizonte (MG), e aos 5 cinco anos de idade, ficou órfão de pai, Aos 10, perdeu a mãe. Sozinho, ainda pré-adolescente, foi para o Rio de Janeiro. Aos 20 anos, em 1963, ingressou no Exército e lá se tornou paraquedista. Juntou dinheiro e comprou a primeira câmera fotográfica. A partir do final da década de 1960, frequentou aulas de História da Arte no Museu Nacional de Belas Artes (MNBA), estudou na International News Cameramen Association do Rio de Janeiro e no Museu de Arte Moderna do Rio, no qual cursou Fotografia, sob orientação de Georges Racz. Na década de 1970, passou a colaborar com jornais independentes e, posteriormente, para grandes veículos, como O Globo e Jornal do Brasil. Para manter sua autonomia e posicionamento político, optou por atuar sempre como freelancer.

O fotógrafo foi também colaborador de jornais independentes e foi freelancer de “O Globo” e do “Jornal do Brasil” no Rio

Foi nesse período, em plena ditadura, que Januário começou a participar de encontros para discutir as questões relacionadas ao racismo no Brasil e conheceu nomes centrais do ativismo e pensamento negro, como Beatriz Nascimento e Abdias Nascimento. Cada vez mais engajado nas lutas, tornou-se um dos fundadores do Movimento Negro Unificado (MNU) e do Instituto de Pesquisas das Culturas Negras (IPCN), que viria a presidir posteriormente por 10 anos.

A Marcha Zumbi Está Vivo, documentada por Januário Garcia em 1983, no Rio, em plena ditadura militar

 Na dupla condição de fotógrafo e ativista, ia variados atos e eventos, sempre carregando sua câmera e utilizando uma boina de crochê com linhas nas cores verde, vermelho, preto e amarelo, um símbolo de autoafirmação em referência ao movimento do pan-africanismo. Entre os atos que documentou, estão a Marcha Zumbi Está Vivo, o I Simpósio sobre Racismo e Discriminação Racial (ambos em 1983, no Rio de Janeiro); a Marcha contra a Farsa da Abolição, em 1988, também no Rio; e o I Encontro Nacional de Entidades Negras, em 1991, em São Paulo (SP) – além de participar de mobilizações, na década de 1980, pelo tombamento da Serra da Barriga, onde ficava o Quilombo dos Palmares.

Como ativista, o fotógrafo foi fundamental na documentação de manifestações do movimento negro no Brasil

O material guardado pelo IMS é composto por cerca de 70 mil fotografias, equipamentos fotográficos e de laboratório e uma biblioteca com publicações focadas em artes visuais e fotografia. Já a coleção que ficará sob a responsabilidade da Unicamp inclui documentos referentes ao movimento negro, entre cartazes e fôlderes de eventos, jornais e outros itens, além de textos assinados pelo ativista e uma biblioteca com livros focados na temática étnico-racial. Amabas as instituições farão um trabalho para juntar todo o acervo e, futuramente, as fotografias e os documentos digitalizados integrarão ambas as bases de dados. Além disso, será formado um conselho consultivo autônomo composto por pessoas que pesquisam a obra de Januário e que conviveram com ele na militância.

Retrato do fotógrafo Januário Garcia, que morreu 2021, aos 77 anos, vítima de covid-19

O coordenador de fotografia do IMS, Sergio Burgi, comenta a importância de difundir a obra do fotógrafo: “A chegada do acervo de Januário Garcia ao IMS estabelece um compromisso da instituição com uma representação mais ampla, mais diversa da fotografia realizada no Brasil. O acervo reúne o trabalho de um fotógrafo de extrema sensibilidade, com uma longa trajetória tanto no campo profissional quanto como militante político”. Para Burgi, Januário foi uma importante liderança do ativismo negro e, com sua fotografia, contribuiu para documentar a memória do movimento negro e do Brasil. 

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