10-2019
Ela ficou cara a cara com a máfia
Livro da italiana Letizia Battaglia, lançado no Brasil, retrata um período sangrento
em Palermo, na Sicília, de luta pelo poder no crime organizado e contra a Justiça
Por Juan Esteves
O livro Letizia Battaglia: Palermo (IMS, 2018) é peculiar por alguns motivos. É um raro trabalho feito por uma mulher que caminhou na contramão da misoginia estabelecida no fotojornalismo até a década de 1980. A maior parte do conteúdo foca em Palermo, capital e maior cidade da ilha da Sicília, com uma série de imagens violentas e dramáticas do período mais sangrento da máfia italiana na cidade. É ainda uma correção de certo anacronismo das publicações disponíveis no mercado nacional a um preço competitivo com os similares internacionais.
Letizia Battaglia, hoje com 83 anos, casou-se aos 16 anos em Palermo, sua cidade natal, e teve três filhas. Separou-se do marido e mudou-se para Milão com elas aos vinte poucos anos, onde começou a trabalhar como jornalista, tornando-se fotógrafa para ilustrar o que escrevia. Autodidata, tem influências declaradas do tcheco Josef Koudelka e das americanas Mary Ellen Mark (1940-2015) e Diane Arbus (1923-1971). Tinha 40 anos quando, em 1974, retornou a Palermo convidada para ser editora de fotografia do jornal L’Ora, periódico então pertencente ao Partido Comunista Italiano e único a denunciar o sistema corrupto e degradado da cidade – que, na época, vivia uma grande luta pelo poder do crime organizado, conhecido como a Segunda Guerra da Máfia.
No L’Ora, conheceu um jovem fotógrafo de 22 anos, o milanês Franco Zecchin, que seria seu companheiro de fotojornalismo e de vida por muitos anos. Um trabalho intenso, verdadeiro marco da fotografia internacional. A atuação dos dois foi consagrada em 1989 com a publicação do antológico Chroniques Siciliennes (Centre National de la Photographie, 1989).
A guerra interna da máfia e também contra a Justiça italiana, principalmente nas décadas de 1970 e 1980, conta Paulo Falcone, diretor artístico da Fundação Sambuca, especialista na obra da fotógrafa, foi fruto de um pacto entre políticos e mafiosos, nascido no imediato pós-guerra, que foi se consolidando desde 1950. Eles decidiam tudo: licitações, acordos, divisões de poder e especulação imobiliária de Palermo. “Foram os anos do chamado ‘Saque de Palermo’, que viu a cidade ser desfigurada”, explica Falcone.
O ativismo de Letizia Battaglia traz um envolvimento visceral. É notável e desconcertante ao mesmo tempo sua proximidade com o que fotografa. Seja com as vítimas mortais que essa guerra produziu, seja com os sobreviventes, suas crônicas fotográficas levam a uma trágica visão, distanciada da cosmética. Além dos corpos evidentes, uma simples conversa entre mafiosos, ou um juiz protegido por seus seguranças andando na rua, é repleta de tensão.
O filósofo Lorenzo Mammi, curador do IMS, escreve que, quando da prisão de Leoluca Bagarella, sanguinário mafioso, a fotógrafa estava tão perto que ele lhe deu um pontapé e ela caiu para trás, mas sem deixar de fotografá-lo. Ele cita Letizia: “Não é belo fotografar alguém algemado, sem a possibilidade de reagir. É preciso pelo menos se mostrar, fazer com que o retratado nos veja, só assim uma paridade de condições, ainda que relativa, pode ser restabelecida”. Letizia estava diante de um homem a quem eram atribuídos nada menos que 300 homicídios.
Marco no fotojornalismo e um documental que ainda não foi ultrapassado, seu trabalho mostrado no livro, entretanto, não oferece apenas a narrativa violenta. Há imagens seminais publicadas no jornal L’Ora, como a visita da atriz Franca Rame (1929-2013) na sede do teatro da comuna em Milão; cenas felizes como a de pastores em Baucina, região de Palermo que se contrapõe a uma manifestação operária em Portella Della Ginestra de 1977, montanha na comuna de Piena Degli Albanesi.
Fac-símiles de primeiras páginas do L’Ora dão uma real dimensão das publicações da fotógrafa que se ampliam também para a revista Grandevú, de política e cultura, nos anos 1980. Além dos textos de Paolo Falcone, de Lorenzo Mammi e do jornalista catarinense Leandro Demori, editor executivo do The Intercept Brasil, há uma timeline com os acontecimentos envolvendo a máfia de 1963 até 1992, extraído da cronologia de Ignazio Romeo para o trabalho La Conta, de Franco Zecchin, de 1993.
Letizia Battaglia esteve em São Paulo (SP) no final de setembro de 2018 e foi uma das atrações do Festival Zum, promovido pela IMS da Paulista, ocasião em que seu livro foi oficialmente lançado no Brasil. O IMS do Rio de Janeiro (RJ) abriu exposição Palermo, em cartaz até fevereiro de 2019. Depois, a mostra virá para a capital paulista, com programação para abril.
Ela recebeu, em 1985, o prêmio W. Eugene Smith for Humanistic Photography, momento em que estava engajada em protestos contra a máfia e a ligação desta com o poder público. No mesmo ano, assumiu a Secretaria de Cultura da cidade pelo Partido Verde, cargo que exerceu até 1991. Depois, retomou a fotografia, foi deputada da Assembleia Regional da Sicília e passou a se dedicar à atividade de jornalista nas revistas Grandevú e Mezzocielo, além de criar a editora Edizioni della Battaglia, centrada em poesia, literatura, ensaios de sociologia e política ligados à região siciliana.
Matéria publicada originalmente em Fotografe Melhor 266