12-2019
Aventura na Antártica
Veja detalhes de uma expedição fotográfica para o extremo sul do planeta que reuniu um grupo de 12 pessoas a bordo de um veleiro
Por André Dib
Já era meia-noite e o grupo ainda fotografava o entardecer na Antártica. Do alto da colina, era possível presenciar o sol tocar as águas do Mar de Drake, e a temperatura pouco abaixo de zero incomodava, mas nada que tirasse o ânimo do pessoal. Era uma chance única de explorar as luzes sublimes da madrugada clara das altas latitudes. Durante o verão antártico, e quanto mais próximo ao Círculo Polar, a luz do dia é quase ininterrupta. Por mais de um mês, o sol nunca se põe durante as 24 horas do dia.
Essa história começou oito meses antes, quando encontrei o amigo Charlie Flesch, biólogo brasileiro, habilitado capitão amador pela Marinha com cerca de 30 mil milhas navegadas. Charlie foi chefe de mergulho da família Schurmann na travessia do Oceano Pacífico em 2015 e tripulante de sete barcos polares, até que, em 2016, comprou o próprio veleiro, batizado de Fernande.
Barco preparado para navegar em condições adversas, com ele liderou outras quatro expedições pelos mares bravios do extremo sul já como capitão. Eu havia pisado na Antártica com a marinha chilena para produzir uma reportagem em 2015. Charlie conhecia minha trajetória como fotógrafo de alta montanha e de lugares isolados, de difícil acesso. A partir daí falamos sobre a possibilidade de levar um grupo para uma expedição fotográfica ao continente gelado.
A Antártica está no imaginário de fotógrafos de natureza de várias partes do mundo. Entretanto, poucos têm a oportunidade de ir até lá. Com isso em mente e querendo fugir do modelo de turismo convencional, planejei com Charlie uma viagem de 21 dias a bordo do veleiro dentro de uma perspectiva fotográfica, e convidei alguns fotógrafos interessados em conhecer aquela região inóspita e ímpar, com independência para fotografar – ao contrário do que sugere os roteiros comuns a bordo de transatlânticos, quando, na maior parte das vezes, se assiste a Antártica de longe, com pouquíssimas possibilidades de desembarque.
Perigosa travessia no Mar de Drake
O grupo era pequeno, de 12 pessoas, entre elas o capitão Charlie, dois tripulantes e oito fotógrafos, além de mim, que iria orientar o grupo nessa empreitada. Em janeiro de 2019, zarpamos de Ushuaia, Argentina, extremo sul do continente sul-americano, já sabendo que viajar para lá não é tarefa fácil. Para se chegar a Antártica, é preciso vencer a temível travessia do Mar de Drake. O nome faz referência a um corsário inglês, destemido navegador que deu a volta ao mundo no século 16 e que trabalhou para a rainha da Inglaterra saqueando os galeões espanhóis da época.
A passagem situa-se entre a extremidade da América do Sul e a Península Antártica. É conhecida por condições meteorológicas difíceis, em que há a convergência das águas dos oceanos Pacífico e Atlântico, sob tempestades, correntes divergentes e ondas que chegam facilmente aos 5 metros de altura – o que justifica o temor que desperta nos marinheiros. Ciente disso, o grupo rumou para a mítica passagem. Para sorte de todos, a travessia se deu de forma relativamente tranquila, e o desafio dos participantes foi o confinamento. Durante os quatro dias de travessia, dividimos um espaço limitado, de 70 pés, com uso racional da água doce. Aproveitamos para conversar sobre fotografia e preparar os equipamentos para o que estava por vir.
Quem encara uma aventura assim já vem preparado, com o espírito colaborativo e a vontade de somar. Charlie faz questão de falar pessoalmente, muito antes da viagem, com cada participante, detalhando os percalços, preparando as pessoas e informando sobre o cotidiano da expedição em que todos participam; e dentro de um cronograma de turnos são estimulados a ajudar nos afazeres cotidianos. Da minha parte, orientei os participantes na escolha do equipamento (o que faz a diferença numa viagem dessa magnitude), falei sobre como enfrentar o frio, indicando roupas e acessórios para que o fotógrafo conseguisse transitar pela área externa do veleiro e desembarcar com a frequência que o roteiro propõe. Num lugar extremo como esse, a temperatura não foge muito da casa do zero grau, no verão, mas o vento faz a sensação térmica despencar e a proteção adequada se torna vital.
Ver um mundo novo de perto
A grande diferença de viajar a bordo de um veleiro é a proximidade com a fauna, tão abundante que impressiona, e as possibilidades de desembarque, que são frequentes e permitem fotografar dentro de um cronograma flexível, no tempo que a boa fotografia exige. Após a tediosa travessia de quatro dias, a viagem adquire uma nova dimensão. É hora de ver de perto um novo mundo, a Antártica, de caminhar em terra firme e fotografar vida selvagem e com cenários que surpreendem mesmo os viajantes experientes.
Nesse roteiro, há desembarque em belas ilhas, aproximação de colônias com milhares de pinguins, de várias espécies, buscando sempre novos cenários com tempo para esperar a luz dourada incidir sobre as montanhas ou o espetáculo do fenômeno do sol da meia-noite. Navega-se pelos canais antárticos, avista-se baleias praticamente todos os dias, com a disponibilidade de tempo para acompanhar essas criaturas colossais, com dezenas de tonelada, passando a poucos metros do barco.
Uma questão crucial é estar sempre preparado para o momento decisivo. Na Antártica, a vida selvagem é presente, dando ritmo ao ciclo, pulsando sobre uma transitória inquietude, seja por conta de uma foca que disputava território com outras da mesma espécie ou por conta de uma skua predando filhotes e ovos de pinguins. E, como as condições do tempo também mudam muito (às vezes um céu límpido dá lugar rapidamente para a chuva), sempre insistia para os participantes desembarcarem para fotografar, independentemente do clima, pois existe a tentação de ficar no conforto do ambiente caloroso do veleiro em dias de tempo ruim.
Muito branco dificulta a exposição
Uma das maiores dificuldades de fotografar as paisagens antárticas é o branco intenso. Normalmente, a refração e o excesso de luz podem enganar o fotômetro se a câmera estiver em modo automático. Na viagem, procurava sempre estimular os participantes a fazer os ajustes no modo manual e estarem atentos a essa variação de luz frequente. Se o fotógrafo deixar a câmera controlar a exposição automaticamente, é provável que terá imagens subexpostas. Isso porque o fotômetro terá como parâmetro os 18% de cinza para atingir o padrão automático da exposição.
Em casos assim, eu recomendava uma leve superexposição de cerca de um ponto. Não mais do que isso, para não haver perda de detalhes e nuances das geleiras, que, ao contrário do que se pensa, são repletas de texturas e semitons. Houve tempo também para falar sobre o histograma da imagem, recurso que torna possível identificar uma exposição errada por meio de um gráfico no visor ou no monitor da câmera, evitando assim que se perca alguma informação importante do assunto. E, nos momentos de ancoragens em águas tranquilas, e quando o tempo permitia, aproveitava para fazer palestras sobre fotografia de paisagens e de vida selvagem, orientando os participantes.
Havia dois momentos na expedição, o de navegar sempre com a câmera preparada e o de deitar no gelo, fazer silêncio e esperar a aproximação dos animais. Ali os ímpetos reprodutivos encontram-se em efervescência. Dentro dessa perspectiva, a vida animal eclode, exibindo-se sem pudores, e esse pode ser o instante certo para um clique que traduz a natureza selvagem do lugar. Já nos momentos de descanso, aproveitava para conferir as fotos, corrigir e sugerir enquadramentos, ressaltando a importância da nitidez para imagens de vida selvagem. Também aproveitava para orientar o grupo no cuidado e na manutenção dos equipamentos em ambiente extremo, sujeitos a condensação, por conta do choque de temperaturas, de possíveis respingos de água salgada (que pode ser fatal para a câmera) ou no cuidado com as baterias expostas ao frio intenso.
Fotografar em qualquer condição
Apesar do cronograma preestabelecido ter sido seguido, uma coisa ficou clara desde o início da expedição: havia um roteiro, mas quem ditava as regras eram as condições climáticas, as correntes marítimas, o gelo e, claro, o interesse fotográfico, diante dos prognósticos do clima. Esse conjunto era determinante para tomar a decisão de onde jogar a âncora. Como dizia o capitão Charlie, “um marinheiro nunca sabe para onde vai”.
Assim, para vencer um dos grandes dilemas da fotografia de natureza, a incerteza, reforçava para o grupo que em dias de céu tempestuoso também é possível fazer grandes fotos. Nuvens carregadas aliadas a raios de sol, formas, luzes e sombras oferecem imagens dramáticas que inspiram e expressam a força da natureza pulsante do lugar, que tanto assombra como fascina.
Depois de 12 dias na Antártica e das surpresas cotidianas, a viagem não havia acabado. Ainda era necessário vencer a travessia de volta, que durou cinco dias, quando o veleiro balançou muito novamente no Mar de Drake, e aproveitar para admirar o voo dos albatrozes tocando o mar com a ponta das asas. Uma baleia ou um bando de orcas saltando próximo à proa do Fernande ajudavam a quebrar a monotonia e o insistente sacolejar – dois integrantes do grupo passaram mal. Isso é inevitável e até um preço baixo a se pagar, pois o grupo trazia na bagagem a lembrança de um silêncio inexplicável e a recompensa traduzida em imagens de um dos redutos mais belos, intensos e selvagens do planeta.
Informe-se sobre as próximas expedições de André Dib em www.andredib.com.br.
Matéria publicada originalmente em Fotografe Melhor 273