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05-2023

Fotógrafo retrata gaúchos com estúdio montado na rua

Um projeto inovador do experiente Eurico Salis registrou personagens anônimos em cidades do interior e deu a eles a oportunidade de também se autorretratarem

Retrato de Jacinto Almeida, de Aceguá (RS): fotógrafo esteve em 41 cidades de todas as regiões do Rio Granbde do Sul

O fotógrafo gaúcho Eurico Salis percorreu cerca de 20 mil km por todas as regiões do Rio Grande do Sul, mais precisamente por 41 cidades, e montou um miniestúdio móvel em ruas, praças, estradas rurais e locais públicos, no estilo lambe-lambe, para fazer retratos de pessoas anônimas. E, logo após fazer o retrato, Salis entregava um smartphone para que os personagens fizessem um autorretrato. O projeto teve este propósito: como ele via as pessoas e como elas mesmas se viam. “Retratos de um mesmo olhar, propósitos diferentes”, diz ele.

Há também descendentes de japoneses entre os gaúchos, como Izidoro Yamamoto, da cidade de Ivoti (RS)

Batizado de Retratos Gaúchos – Olhares Inesperados, o projeto teve como objetivo, segundo Salis, buscar na expressão do olhar a identidade de cada pessoa. Como ele queria se concentrar nos olhos das pessoas, eliminou o cenário. Havia apenas um pano preto atrás de cada personagem. “Não queria me apoiar em outros recursos e não seria produtivo acontecer o mesmo com os personagens. O retrato é um gênero repleto de fantasias e muitas vezes as pessoas buscam admiração mostrando-se de uma maneira diferente do que realmente são. Assim acontece com os narcisistas ou com os inibidos”, ensina o fotógrafo, que comemorou 40 anos de carreira em 2022.

A jovem Eduarda Braum, de Campinas das Missões (RS), onde há uma grande comunidade de imigrantes russos

Para o experiente retratista, é no olhar que as pessoas mais se reconhecem e mostram sua personalidade. “É como se fosse a carteira de identidade da alma. Lá estão depositadas as marcas do tempo, o mapa dos nossos dramas”, afirma poeticamente.

Retrato do pescador José Dorvalino da Costa, de Torres (RS), região litorânea

Ele imaginava, antes de iniciar a expedição, que se formariam filas nas praças repletas de gente querendo ser retratadas. Mas viu o contrário: as pessoas estão se afastando cada vez mais umas das outras, por desconfiança, receio de serem atraídas a golpes, inibição em revelar a intimidade e até egoísmo em compartilhar a vida em sociedade, comenta.

O artista de rua Ramon Lennhardt foi retratado em Porto Alegre (RS) por Eurico Salis

Diante de um público mais escasso do que ele previa, era fundamental fazer um approach bem-feito, uma aproximação sem assustar quem estava indo ao dentista, correndo para pagar uma conta no banco, saindo de uma sala de aula… As pessoas não estavam na rua para serem interpeladas por um fotógrafo e seu assistente em frente de um pano preto, tripés e banners. Assim, a aproximação só ocorreu depois que Eurico Salis se identificava com algo que a pessoa transmitia no olhar.

Leci Pinheiro, que vive sem situação de rua em Cachoeira do Sul (RS), se sentiu valorizada ao posar para um retrato

O passo seguinte era se aproximar e estabelecer um contato que fosse, em primeiro lugar, apoiado na confiança. Sem isso, ninguém se entrega de maneira verdadeira em um retrato. “Para uma pessoa revelar sua verdadeira identidade do fundo da alma através do olhar é preciso que ela confie no fotógrafo. É preciso humanizar a relação para torná-la verdadeira. Caso contrário, o olhar legítimo se esconde, some, não se deixa revelar”, ensina ele.

O agricultor Valdomiro Knorst, de Nova Petrópolis (RS), não abandonou seu cigarro de palha na hora do retrato

Experiente, gentil, bom de papo, ele fez amizade com os 150 personagens que fotografou, independentemente de condição social, raça, gênero e cultura. Sabe o nome da maioria deles, detalhes da vida de cada um, pois penetrou no mundo íntimo dos personagens. “Foi um trabalho de muita inclusão social também. Uma senhora idosa em situação de rua, dona Leci Teixeira Pinheiro, de Cachoeira do Sul, me disse emocionada, depois de ser fotografada, que aquele dia era um dos melhores da sua vida porque eu tinha notado ela no meio da rua e que ninguém nunca a notava. E que ela estava com um sentimento de pertencer a um grupo, o das pessoas fotografadas”, conta Salis.

A beleza negra de Vitória Prestes Machado, que foi retratada em uma praça de Pelotas (RS)

Depois de cada sessão, que durava em torno de 10 a 30 minutos, ele entregava um smartphone para a pessoa fazer seu autorretrato. Muitas vezes até brincava com eles: “Vou virar de costas, sumir da cena para tu fazeres o que queres”. Todas as pessoas tiveram o autorretrato publicado nas redes sociais do projeto no Facebook e no Instagram, localizadas por cidades.

O fotógrafo Eurico Salis retratando um morador de Antonio Prado (RS) no miniestúdio montado na praça da cidade_Foto de João Mattos

João Mattos, assistente de longa data de Salis (há mais de 20 anos), fotografou os bastidores, fez vídeos e gravou o depoimento de alguns personagens. Tudo isso foi para as redes sociais, nas quais os personagens, ao longo dos meses em que o fotógrafo viajou, puderam se ver, compartilhar, curtir e mostrar seu retrato para familiares e amigos. “Acredito que assim eles se apropriaram bastante do projeto. Fiquei muito satisfeito com esses resultados de compartilhamento entre todos”, comenta Eurico Salis.

O miniestúdio portátil contava apenas com um fundo preto e as imagens sempre foram captadas com luz natural, na rua, com ajuda de um rebatedor circular quando necessário. Eurico Salis usou uma DSLR Nikon D850 com as lentes 35 mm f/1.8, 85 mm f/1.8 e 24-120 mm f/4.

Em 40 anos de vida profissional, lembra que passou uma década fotografando em P&B, revelando filmes e ampliando no quarto escuro em Bagé (RS), onde nasceu e morou até os 20 anos. Por ter acesso apenas ao P&B na época, ele acredita que formou a base para desenvolver seu estilo depois, quando descobriu cores, texturas, enquadramentos, planos, linhas… “Migrei com resistência para o digital, porém descobri um mundo ilimitado com possibilidades infinitas para expandir a criatividade”, comenta.

Pontua que se por um lado o digital trouxe benefícios imensos à pós-produção, por outro,  gerou a banalização, pincipalmente por meio dos presets disponíveis na internet. “São filtros prontos que tiram a possibilidade de o fotógrafo expandir sua capacidade criativa e tornam a fotografia impessoal, um amontoado de clichês”, avalia. Também acredita que a incorporação de uma câmera no celular popularizou a fotografia como jamais visto antes, mas, por outro lado, aumentou a vulgarização do retrato, principalmente nas redes sociais.

Viviane Ribeiro, de Porto Alegre (RS), faz uma selfie após ser retratada por Salis: o autorretrato também fez parte do projeto_Foto de João Mattos

Na sua trajetória de fotografia profissional, atuou como fotojornalista e produziu imagens para revistas como Veja, Exame e Bizz. Fez mais de 30 capas de álbuns musicais (LPs, CDs e DVDs) e trabalhou também bastante tempo com fotografia publicitária. Como autor, publicou 11 livros individuais e outros 10 em parcerias. “Paralelamente, sempre desenvolvi meu trabalho autoral na área da fotografia documental, com base em narrativa e técnica, sem cair na imagem decorativa apenas”, afirma.

O projeto Retratos Gaúchos – Olhares Inesperados ganhou exposição em Porto Alegre, primeiro no Instituto Caldeira e depois na PUC-RS, e se transformou também em livro de 184 páginas, impresso em papel couchê de qualidade no formato 27 x 30 cm, com textos de Anilson Costa. Uma tiragem de 400 exemplares foi doada a quatro instituições de caridade, onde foram vendidos por R$ 180, e outros 300 livros irão gratuitamente para o sistema de bibliotecas de escolas públicas. A partir de janeiro de 2023 a publicação chegará às livrarias. Para mais informações do projeto e do livro: euricosalis@gmail.com.

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