05-2023
Cinema mostra a vida incomum de Lee Miller
Kate Winslet viverá a inquieta fotógrafa americana, que foi aprendiz
e modelo de Man Ray e fotojornalista na Segunda Guerra Mundial
A americana Lee Miller teve uma vida longe de ser comum. Nela, existem dois períodos marcantes ligados à fotografia: o primeiro foi a partir de 1929, quando, aos 22 anos, foi aprendiz do fotógrafo surrealista Man Ray e também sua modelo em retratos e nus artísticos inovadores; o segundo foi durante a Segunda Guerra Mundial, quando integrou o grupo de cinco fotojornalistas credenciadas para acompanhar as tropas americanas. Daria um filme, não? Pois é exatamente isso que ocorrerá: “Lee”’, um drama biográfico, entrou em fase de produção tendo a britânica Kate Winslet como estrela principal – no elenco ainda estão o sueco Alexander Skarsgard, a francesa Marion Cotillard, a britânica Andrea Riseborough e americano Andy Samberg.
O filme é dirigido pela americana Ellen Kuras, mais conhecida por seus trabalhos como diretora de fotografia em filmes como “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças” (2004) e “Profissão de Risco” (2001) e como diretora de “The Betrayal – Nerakhoon”, indicado ao Oscar de Melhor Documentário em 2009. O longa está sendo rodado na Croácia e a produção liberou por enquanto apenas uma imagem de Winslet como Lee Miller, vestindo uniforme militar e usando uma Rolleiflex. É inspirado na biografia “The Lives of Lee Miller”, de Anthony Penrose, filho da fotógrafa com seu segundo marido, o historiador e pintor surrealista britânico Roland Penrose.
Elizabeth “Lee” Miller começou como modelo e depois seguiu a carreira de fotógrafa. Ela morreu em 1977, aos 70 anos, sem ter um destaque merecido no mundo da fotografia, apesar do trabalho competente de muitos anos. Diante ou atrás da câmera, era uma mulher à frente de seu tempo: um de seus momentos mais irreverentes foi quando entrou na banheira do apartamento de Hitler, em Munique, Alemanha, no dia em que ele cometeu suicídio durante o cerco aliado de Berlim. Lá, foi registrada pelo fotógrafo americano David E. Scherman, seu amigo e correspondente de guerra da revista Life – ela também o fotografou da mesma forma.
Vogue e Paris
Nascida na pequena Poughkeepsie, estado de Nova York, em 1907, Lee Miller se mudou para Paris aos 18 anos para estudar figurino e design. A pedido do pai, voltou aos EUA no seguinte para cursar desenho e pintura e acabou sendo descoberta pelo próprio Condé Montrose Nast (editor das revistas Vogue e Vanity Fair) enquanto atravessava uma rua de Nova York. Começou então uma carreira de modelo que a levou à capa da Vogue, onde trabalhou com vários fotógrafos renomados, incluindo o luxemburguês Edward Steichen.
Como tinha interesse por fotografia e arte, Steichen sugeriu que ela voltasse a Paris para ser modelo e aprendiz de Man Ray – o trabalho do celebrado fotógrafo tem várias imagens feitas com ela, como algumas solarizações que marcaram a produção do celebrado fotógrafo americano. Ela então se tornou parceira de Ray tanto romântica quanto profissionalmente e se aproximou de outros artistas, como o pintor espanhol Pablo Picasso, o poeta Paul Éluard e o cineasta e dramaturgo Jean Cocteau, ambos franceses.
Em Paris, Lee Miller fez trabalhos que seriam de Man Ray deixando-o livre para pintar – várias fotos dessa época, atribuídas a ele, seriam de autoria dela. Essa questão de autoria gerou uma briga entre o casal e Ray a agrediu, fazendo com que Lee Miller o deixasse em 1932 e voltasse para Nova York, onde abriu um estúdio com seu irmão Erik, que trabalhava como fotógrafo de moda. Nessa época, ela tinha clientes importantes, como Elizabeth Arden, Helena Rubinstein e BBDO, e viu também seu trabalho ser exibido em uma exposição de fotógrafos internacionais no Museu do Brooklyn, ao lado de nomes como László Moholy-Nagy, Cecil Beaton, Margaret Bourke-White, Tina Modotti, Charles Sheeler, Man Ray e Edward Weston.
Espiã russa?
Lee Miller chegou a ser casar com o empresário egípcio Aziz Eloui Bey, mas três anos depois se separou e retornou a Paris, onde conheceu Roland Penrose. No começo da Segunda Guerra Mundial, morava com Penrose em Londres quando os bombardeios sobre a cidade começaram. Ela ignorou pedidos de voltar para os EUA e iniciou carreira de fotojornalista como correspondente de guerra da Vogue, documentando os ataques à Inglaterra e produzindo até ensaios de moda em meio aos escombros. Em dezembro de 1942, tornou-se correspondente do exército americano e de publicações da Editora Condé Nast.
Lee Miller foi para a França menos de um mês depois do Desembarque da Normandia e registrou os primeiros usos de napalm no cerco de Saint-Malo, bem como a liberação de Paris e o horror dos campos de concentração nazistas em Dachau e Buchenwald, na Alemanha. Também foi uma das primeiras a chegar ao apartamento de Hitler, em Munique, cujo endereço ela guardou no bolso por anos. Na mesma época, documentou crianças doentes no Hospital de Viena e a vida miserável dos camponeses na Hungria pós-Segunda Guerra.
Com o fim da guerra, continuou trabalhando para a Vogue por mais dois anos, cobrindo eventos de moda e fotografando celebridades. A guerra, no entanto, afetou a fotógrafa de tal forma que ela teve vários episódios depressivos – hoje chamado de transtorno de estresse pós-traumático. Lee Miller entregou-se à bebida, o que acabou com sua carreira na fotografia. Em 1947, descobriu que estava grávida de Penrose e eles se casaram naquele ano, quando nasceu Antony.
Mais um fato inusitado na vida agitada da fotógrafa: entre 1940 e 1950, o MI5, serviço de secreto britânico, a investigou por suspeita de que ela seria uma espiã da União Soviética (nada foi comprovado).
Musa de Picasso
Superado o alcoolismo, em 1949, Lee Miller e Penrose compraram uma fazenda na região de Sussex, Inglaterra, que se transformou em uma espécie de destino artístico para pintores, fotógrafos e escritores entre 1950 e 1960. Ela deixou a fotografia profissional de lado e passou a dedicar à culinária, especializando-se em receitas para revistas femininas. Seguiu a vida longe dos holofotes até um câncer a derrotar em 1977.
Além da biografia, Antony Penrose editou em 2005 Lee Miller’s War: Photographer and Correspondent with the Allies in Europe 1944-45, com prefácio de David E. Scherman. O filho também descobriu cerca de 60 mil negativos, diários e outros itens da mãe em 2013, num sótão da casa da fazenda da família – meses depois, criou uma fundação em nome de Lee Miller, o que fez o interesse sobre o trabalho da fotógrafa aumentar bastante. Entre esses milhares de negativos havia centenas de retratos de Pablo Picasso, o que intrigou o Antony.
Ele descobriu então que no verão de 1937, um grupo de artistas foi para Mougins, no sul da França, entre eles o mais influente da época, Picasso – que acabara de completar a obra-prima Guernica. No grupo estava Roland Penrose, que percebeu que Picasso ficou claramente encantado por Lee Miller. Ele prontamente pintou não um, mas seis retratos da musa, intitulados conjuntamente L’Arlésienne (a garota de Arles). Em troca, ela o fotografou, dando início de uma amizade que duraria 40 anos – nesse tempo, ela fez centenas de retratos dele, que só foram descobertos quando Antony fuçou o sótão.