01-2018
Câmeras que revolucionaram a fotografia
Por Mário Bock
Olhar aguçado, sensibilidade, reflexos rápidos e bom gosto são requisitos importantes para produzir boas fotos. Mas há um detalhe imprescindível: câmera e lentes apropriadas, uma questão primordial desde a invenção da fotografia no século 19. Da pioneira Daguerre, uma simples caixinha de madeira, às câmeras de fole, passando pelas de baquelite, de telêmetro, depois as de lentes gêmeas, as reflex, as eletrônicas com autofoco até finalmente chegar às digitais, a fantástica evolução do equipamento tornou a fotografia mais fácil e acessível. E, assim, em mais de uma centena de anos, milhares de modelos de câmeras foram lançados. Mas, curiosamente, apenas um punhado delas marcou a história da fotografia e ganhou a preferência do público mundo afora. Por que será?
Sabe-se que tudo começou com o francês Nicéphore Niépce, que, ao produzir em 1827 a primeira foto do mundo (feita desde a janela de seu estúdio em Chalon-sur-Saône, França), atestou a funcionalidade de seu processo fotográfico. Doze anos depois, em 1839, seu compatriota Daguerre, apresentou o daguerreótipo, com contornos muito mais nítidos e tempo de exposição bastante reduzido em relação à imagem de Niépce. A foto era em negativo sobre um retalho de metal que ficava visível em positivo conforme a incidência da luz. Batizada com seu nome, a câmera que fez tal proeza não passava de uma pequena caixa de madeira com lente rudimentar.
Logo proliferaram versões mais esmeradas da Daguerre, destacando-se a câmera de fole, lançada em 1851, que aceitaria de bom grado a espetacular novidade seguinte: a chapa de vidro, um negativo que de tão perfeito popularizou a fotografia, desbancando séculos de reinado da pintura à mão de portraits e retratos de família.
Inicialmente sensibilizada no momento da foto, era usada ainda úmida. Não tardaria chegar a chapa seca com emulsão à base de gelatina e sais de prata, que favoreceu a fabricação em massa do negativo fotográfico nos Estados Unidos. Um desses fabricantes, em Rochester, era George Eastman, criador da Kodak, em 1888. Quatro anos antes ele patenteara o filme em rolo e, logo depois, revolucionou o mercado de vez ao criar, em 1889, o filme 35 mm, inicialmente para o cinema. Na fotografia, ele seria incorporado apenas em 1913, mas se firmou a partir de 1925, após o lançamento da primeira câmera Leica, criada pelo alemão Oskar Barnack.
O início, as alemãs
Numa época em que a luz elétrica era rara, com os estúdios e laboratórios funcionando com luz natural, a cópia era do tamanho do negativo. Então, quanto maior a câmera, melhor. Havia as do tamanho 9 x 12 cm, mais usadas, de 12 x 18 cm e as grandes de 18 x 24 cm, para serviços mais requintados. As câmeras de madeira não exigiam muito da marcenaria, mas era imprescindível ter uma objetiva de qualidade, de preferência alemãs e, melhor ainda, uma Carl Zeiss, produtora da maioria das lentes da época, e inspiração das atuais.
As lentes Carl Zeiss equipavam as melhores câmeras “de campo”, basicamente estojos de madeira com tampa de abrir, que incorporavam um trilho no qual corria a objetiva, montada em um suporte e conectada ao corpo pelo fole. As poderosas Voigtländer, Agfa, Goerz, Ica, Enermann e Contessa-Nettel usavam essas lentes. Em 1926, a Carl Zeiss cansou de apenas fabricá-las e partiu para a produção de câmeras. E o que fez? De uma só tacada adquiriu quatro das maiores fabricantes da época (as listadas antes, exceto Voigtländer e Agfa) para lançar as câmeras Zeiss Ikon. Logo teria a preferência mundial.
Para os fotógrafos amadores, a marca germânica fez inúmeras versões de câmeras para filme em rolo, dos mais variados formatos, qualidades e preços. A preferida (ou pelo menos a mais desejada) foi a sofisticada Super Ikonta, para filme 120, lançada em 1929 e produzida por 30 anos com poucas modificações.
Detalhes técnicos que conquistaram o fotógrafo: o avanço do filme com contador automático, a rapidez nesse avanço, o sistema à prova de dupla exposição (comum nas câmeras do tipo) e a focalização por um grande telêmetro, com o inovador ajuste por disco acionado pelo polegar.
Guerra de gigantes
Até os anos 1930, duas câmeras de fole marcavam presença mundial no fotojornalismo incipiente da época e na fotografia social: as alemãs Ica Orix e Goerz Anschütz – esta mais avançada por oferecer obturador de cortina na parte traseira, com velocidades até 1/1.200s, e facilidades no intercâmbio de lentes.
Mas, com recursos limitados e dificuldades de uso “na mão”, deram abertura para o advento de duas câmeras poderosas (e grandes), logo adotadas por profissionais mundo afora: a Speed Graphic, americana, lançada em 1912 e produzida até 1973; e a Linhof, alemã, lançada em 1903 e ainda fabricada.
Derivadas da câmera de estúdio, ambas eram mais práticas e rápidas de usar, graças ao visor óptico de boa precisão. A Speed Graphic exibia recursos sofisticados, como o visor tipo “túnel” com correção de paralaxe, o foco por telêmetro, o sistema Graflock de troca rápida da chapa, o obturador de cortina na parte traseira com velocidades até 1/1000s. Alguns anos depois, ganharia o flash de lâmpada de uso único, criado nos anos 1930 na Alemanha, acessório que deu forte impulso à reportagem fotográfica. Como vantagem extra, tinha um cabo que servia como “grip”, facilitando a empunhadura. Nos Estados Unidos, a Speed Graphic foi considerada fundamental no sucesso dos tabloides, jornais populares de formato menor, que conquistaram o público pelas reportagens sensacionalistas ilustradas por fotos dramáticas de página inteira.
Aos fotógrafos amadores eram destinadas as câmeras de fole para uso do filme em rolo para 8 poses, de negativo 6 x 9 cm ou maior, bem mais prático do que a chapa de vidro. Deviam ser usadas ao nível da cintura, com o enquadramento feito por um diminuto visor com espelho, junto da objetiva. O ajuste do foco era por meio de uma escala em metros (ou pés) rente aos trilhos. Nesse segmento, as câmeras Kodak tinham a preferência do grande público, principalmente pelo custo-benefício razoável para fotos domésticas. Nos modelos Autographic, um recurso exclusivo seduzia o usuário: a gravação de legenda de uma linha diretamente no negativo usando-se uma “caneta metálica” através de uma janelinha na tampa traseira.
Subvertendo a ordem
A vida dos fotógrafos dos tempos antigos não era fácil. As câmeras eram grandes e desajeitadas, as chapas de vidro, frágeis e pesadas, ainda mais quando levadas em quantidade. Foi o que incentivou a criação de câmeras menores, mas ainda sem dispensar o negativo de vidro, caso da alemã Ermanox, lançada em 1924, que expunha chapas do tamanho 4,5 x 6 cm.
Por ser compacta e dotada de uma luminosa lente 85 mm f/2 (apropriada para fotos sem flash), inaugurou a moda dos “instantâneos”, imagens informais até então difíceis de obter com as câmeras lerdas daquela época. Foi aí que surgiu a inspiração do engenheiro Oskar Barnack. Em 1924, ele apresentou o projeto de uma câmera para seu patrão Ernst Leitz II, então dono da indústria óptica Leitz Wetzlar, e conseguiu a aprovação para produzi-la em série. Foram feitas 30 raríssimas Leica 0 e, logo depois, mais 500 unidades da Leica I, a primeira a usar a película de 35 mm.
A Leica surpreendeu o mundo pelo tamanho compacto, pela facilidade e rapidez de uso e, pela nitidez e luminosidade de suas lentes. Só não agradava o filme de 35 mm: comparado com o negativo de grande formato, como poderia gerar boas fotos? – discutiam os fotógrafos. Por isso, pejorativamente chamada de “câmera miniatura”, demorou a ser aceita. No entanto, a Kodak acreditou no potencial do filme 35 mm e passou a fabricá-lo em quantidade, aperfeiçoado para fotografia e acondicionado em bobinas. Foi o que deu início ao formato que segue até hoje, servindo como referência e influenciando o tamanho do sensor das câmeras digitais.
Não foi somente a Leica a quebrar a hegemonia das câmeras de fole. A Rolleiflex, lançada em 1929, ganhou o mercado com o inovador formato TLR de lentes gêmeas, combinando a precisão do visor reflex na objetiva superior, para enquadramento e foco, com uma segunda objetiva, abaixo, apenas para a exposição. Além disso, soube tirar o máximo proveito do filme de médio formato (120) produzindo negativos 6 x 6 cm, o que elevou para 12 poses a quantidade disponível por rolo. Até então, eram somente oito o tamanho 6 x 9 cm na câmera de fole.
Feita em metal, a Rollei introduziu ótimas novidades: o avanço do filme por botão ou alavanca, com contagem automática, e que também armava o obturador; a tela de foco despolida com lente fresnel, para maior luminosidade, com correção automática de paralaxe; e o capuchão metálico, que pôs fim ao famigerado pano preto das câmeras de fole.
O grande público
Tanto a Leica como a Rollei deram novo rumo à fotografia. No caso da primeira, especialmente porque ao motivar a Kodak a fabricar filmes de 35 mm também incentivou a produção em massa de câmeras para esse formato, sendo que a primeira a ser criada pela própria marca americana foi a Retina, lançada em 1937 e produzida até 1967, em Nagel, na Alemanha. Chamava a atenção o tamanho compacto favorecido pela objetiva colocada em posição ao abrir a tampa, a elegância, a excelência da objetiva alemã Schneider e o foco por telêmetro.
Já a Rollei deu impulso ao filme 120 ao comprovar que o negativo 6 x 6 cm era sim páreo para a chapa de grande formato, com a vantagem da maior quantidade de poses, a facilidade de uso e de revelação e o custo mais baixo. Ela ganharia inúmeros clones, com o aspecto positivo de terem popularizado o formato pela maior facilidade de aquisição. A preferida foi a japonesa Yashica, produzida em diversas versões, como a profissional Yashica Mat, dotada de fotômetro CDS externo, bastante sensível. Outra TLR que fez bastante sucesso foi a Flexaret, fabricada na antiga Checoslováquia por 30 anos, a partir de 1939, com a peculiar alavanca de ajuste de foco sob a objetiva inferior. De preço bem acessível, era uma ótima opção para as fotos familiares.
Por seu lado, a pequena Leica impulsionou a fotografia ao inspirar a produção de modelos de preço mais acessível. As principais marcas japonesas (Canon, Minolta, Konica, Olympus e Nikon) cresceram e evoluíram graças ao formato 35 mm. E, por produzirem câmeras e objetivas competitivas, de ótima qualidade, adquiriram know-how suficiente para deslanchar a produção de câmeras inovadoras, com recursos sofisticados e funcionamento automático. Viriam a seguir os equipamentos eletrônicos, as câmeras com autofoco e, finalmente, as digitais.
O formato ideal
Mas as câmeras de fole, de telêmetro e as TLRs não foram suficientes. Um novo formato surgiria das mãos de herr Karl Nüchterlein, engenheiro da fábrica alemã de câmeras Yhagee, a Exakta, lançada em 1933, a primeira SLR para filme em rolo 127. Um ano depois, ganhou o inovador avanço do filme por alavanca e, em 1935, foi a primeira a disparar flash de lâmpada, criado nessa época. A Kine Exakta, a primeira reflex (SLR) 35 mm do mundo, foi lançada em 1936 já com o flash com disparo sincronizado com o obturador.
O formato da Exakta fascinou os fotógrafos pela possibilidade de intercâmbio de lentes, a facilidade de enquadrar e focalizar com qualquer objetiva, viabilizando o uso extensivo de teles, além de fazer closes e macros sem a necessidade de visor adicional. O equipamento era um deslumbre de recursos, apesar do estilo exótico e de os controles e o disparador ficarem à esquerda. Ela permitia a troca do visor, o avanço do filme era por alavanca, a velocidade do obturador ia de 10 segundos (usava o disparador automático) a 1/1.250s. Tinha até um luxo: contava com uma faquinha interna para cortar o filme, medida de economia.
Mesmo assim, o formato SLR representado pela moderna Exakta demorou a vingar. Talvez pelo preço mais elevado, o visor bem mais “escuro” do que o das câmeras de telêmetro, as poucas lentes disponíveis… O cenário começou a mudar apenas 20 anos depois, quando a Zeiss Ikon lançou a elegante Contaflex, compacta e fácil de usar, que permitia o intercâmbio de lentes, embora limitado a duas (uma tele e uma grande angular). Por um bom tempo foi a preferida dos fotógrafos, embora os aficionados partissem para a Edixa, lançada em 1956, uma nova câmera alemã que ditou o estilo e a operação da moderna reflex.
A Edixa tinha visor intercambiável, avanço do filme por alavanca e encaixe de rosca para as lentes. Pouco depois, ganharia espelho de retorno imediato e diafragma automático. Infelizmente, e apesar de todo o esforço de modernização, seria atropelada pela enxurrada de câmeras japonesas nos anos 1960, que vieram para ficar.
A era japonesa
Bem que a Zeiss Ikon tentou conter a invasão nipônica lançando a Contarex, em 1959, uma poderosa SLR dotada dos mais avançados recursos, incluindo as impecáveis lentes Carl Zeiss. Mas era tarde demais. Os japoneses invadiram o mundo inicialmente com ótimas câmeras de telêmetro, a maioria com fotômetro, bem mais elegantes e sofisticadas do que as alemãs, com a vantagem de ter um preço menor.
Destacavam-se Canon Canonet com o prático sistema QL de colocação do filme; as Yashica da grande família Minister e Linx, chamando a atenção o modelo 14E com uma enorme e luminosa lente de 50 mm f/1.4; a poderosa Minolta da família 7s; e a respeitada Olympus35 SP, cuja qualidade e precisão chegou a ser comparada à da Leica.
Na década de 1970, duas câmeras bem mais simples e da mesma marca ganharam a preferência para fotos de família, passeios e uso doméstico: a Olympus Trip e a pequena Olympus Pen, para fotos de “meio- quadro”, que dobrava a quantidade de fotos por filme. Ou seja, de 36 poses passava a oferecer 72 – mas a economia inicial se transformava em despesa extra quando chegava a conta do laboratório. As duas câmeras contavam com fotômetro de selênio ao redor das objetivas, e isso assegurava uma ótima exposição automática.
Os anos dourados de 1970 foram marcados por poderosas SLRs, já com a preferência dividida entre duas marcas, Nikon e Canon, destacando-se a Nikon F1 e F2, de um lado, e a Canon F1, de outro. Ambas contavam com aperfeiçoada leitura de luz TTL, alta velocidade de disparo (1/2000s) e sofisticado avanço motorizado do filme (opcional), o motor-drive, na velocidade média de quatro fotos por segundo. Nessa época, o fotógrafo profissional devia sempre levar uma segunda câmera, mais simples. Assim, a Nikon produziu a Nikkormat e a Nikon FM e FE, de exposição automática. Curiosamente, de tão boas, logo foram adotadas como titulares.
Nova geração
Em 1966, uma câmera japonesa revolucionaria novamente a história da fotografia e das câmeras: a Yashica Electro 35, um modelo simples de telêmetro, porém, a primeira de funcionamento e exposição totalmente eletrônicos. Foi o ponto de partida da criação de uma nova geração de câmeras mais avançadas e ainda mais precisas, de todos os tipos e formatos.
E logo elas se tornaram as preferidas pelos fotógrafos: a inovadora Pentax 6×9, para estúdio (1966), versão “ampliada” da bem-sucedida SLR Asahi Pentax Spotmatic, de 35 mm; a sofisticada Canon T90 (1986), reflex com motor-drive incorporado; a Nikon FA (1983), a primeira com o sofisticado sistema de leitura de luz por zonas na cena (Matrix), hoje incorporado em todas as câmeras.
Em 1985, a Minolta lançou a Maxxum 7000, a primeira SLR com foco automático do mundo. Daí em diante viria outra geração de câmeras, que provocaria uma reviravolta no mercado – e obrigaria os fotógrafos a novamente trocar de equipamento. Ainda não pelas digitais, mas sim pelas sofisticadas autofoco com superzoom; as sofisticadas Nikon da família F (como a F80, 90 e 100) e as poderosas F4, F; as Canon da extensa família Rebel, a EOS 5 com o foco comandado pelo olho do fotógrafo e as poderosas EOS 1 e 1n; além de sofisticadas compactas com superzoom.
E mal os fotógrafos se acostumaram com as adoradas câmeras de 35 mm, hoje chamadas de analógicas, chegaram as SLRs digitais de preço mais acessível. E tome mais uma nova geração de digitais que vêm atiçando a vontade de todo tipo de fotógrafo. A bola da vez é a câmera mirrorless, sem espelho, dos mais variados modelos e marcas, como Fotografe sinalizou na edição 235. Parece uma retomada dos tempos da câmeras rangefinder, com modelos menores e mais leves. Isso pode decretar a médio prazo o fim das SLRs, que tiveram um dos seus melhores momentos no lançamento da Nikon F, em 1959, que revolucionou o fotornalismo da época.