10-2019
Retratos sob a luz de uma ideia
Conheça o processo criativo que deu origem ao premiado ensaio Iluminados, em que o fotógrafo de natureza Zé Paiva retratou personagens com a técnica do light painting
Por Érico Elias
Zé Paiva é um fotógrafo gaúcho radicado em Florianópolis (SC) desde 1985. Depois de trabalhar para o mercado publicitário por alguns anos, tendo um dos estúdios mais importantes da capital catarinense, migrou para a fotografia de natureza, na qual se firmou como um dos principais nomes do Brasil, publicando vários livros, produzindo imagens para fine art e compartilhando conhecimento por meio de workshops e expedições. Durante um curso de pós-graduação que ele fazia nasceu a ideia que o levaria a experimentações e a uma nova especialidade: retratos.
A série Iluminados é composta por 20 imagens de moradores de Florianópolis, todos com um mesmo perfil: pessoas com mais de 60 anos conhecidas na cidade por suas habilidades com o trabalho manual. Zé Paiva utilizou a técnica de light painting para retratá-los, uma decisão ousada e em nada gratuita.
Os personagens foram escolhidos a partir de uma teia de contatos tramada pelo fotógrafo, começando por pessoas que eram suas conhecidas e depois se ampliando com indicações de amigos ou terceiros, que foram tomando conhecimento do projeto. Ele queria ir além dos personagens mais característicos da cidade, como a rendeira e o pescador. Também buscou representar a variedade de origens dos habitantes de Florianópolis, gente de Estados e países diversos. “O trabalho acabou tendo essa dimensão antropológica”, diz Zé Paiva.
A realização de cada retrato envolveu aspectos psicológicos, cenográficos e técnicos, que desafiaram o fotógrafo especializado em natureza. Os aspectos psicológicos estão ligados à interação entre retratista e retratado, fundamental nesse segmento. Zé Paiva conta que o primeiro desafio foi tentar explicar qual era o projeto e a intenção ao personagem para convencê-lo a participar, o que não ocorreu em todos os casos.
“A maioria das pessoas eu tive que visitar e conhecer melhor em uma primeira conversa, para só então marcar um dia para fazer a foto. Nenhuma das imagens do projeto foi feita sem o mínimo de uma hora de conversa preliminar. Para quem não está acostumado com a técnica fotográfica, é difícil explicar como funciona o light painting. Muitas vezes, a pessoa acha que você é uma espécie de bruxo, quando mostra a imagem e fala que ela foi feita no escuro, com uma lanterna”, informa.
Imagem e informação
O envolvimento com o retratado evolui para a cumplicidade no momento do clique. É aí que entram os aspectos cenográficos, como montar a cena, posicionar e dirigir o modelo. No contexto da série Iluminados, que visava exaltar o papel do trabalho manual, Zé Paiva realizava uma busca de objetos que pudessem indicar a atividade de cada personagem retratado.
“Tinha que reunir o máximo de informações em uma só imagem. Para construir a cenografia pedia para conhecer um pouco da casa e descobrir objetos interessantes. Aí muitas vezes entrou a interação e a participação dos personagens, dando sugestões ou escolhendo os objetos de sua predileção”, recorda ele.
Um caso curioso foi o do pintor Rodrigo de Haro, para quem o fotógrafo havia escolhido uma bela cadeira antiga para se sentar. Na hora de fazer o retrato, ele preferiu sentar-se em uma cadeira de plástico, colocou para o lado a cadeira antiga e nela posicionou uma bandeira do Brasil Império (veja na página XX). “Foi um personagem que ajudou na criação do cenário”, diz Zé Paiva.
Aspectos técnicos
O fotógrafo escolheu um enquadramento vertical, ideal para retratos, e objetiva grande angular, de forma a captar os objetos em cena ao redor do personagem. O princípio do light painting consiste em deixar o obturador da câmera aberto em modo B no escuro total e iluminar a cena com uma ou mais lanternas. A técnica comporta muitas variáveis e exige experimentações prévias. Quanto mais próxima a lanterna do objeto iluminado, mais concentrado o facho de luz e maior a impressão de artificialidade.
Zé Paiva conta que com a prática foi aprendendo a construir um mapa mental da cena e um percurso a ser seguido. Ele optou por se aproximar bastante dos objetos iluminados, dando ênfase a alguns aspectos da cena. Uma vez que a escuridão toma conta do ambiente e o disparador é acionado, o percurso realizado pela lanterna será decisivo para o resultado final. No caso de cenas com modelos vivos, a complexidade é ainda maior.
“Para fazer retratos com light painting você só pode passar a lanterna pelo personagem uma vez. Se você voltar a iluminar o rosto, por exemplo, ele vai sair borrado, por mais que a pessoa tente ficar estática, na mesma posição”, diz. Com o tempo ele percebeu que o mais fácil era começar iluminando o personagem, para depois iluminar os objetos da cena. “Passava os primeiros 10 a 15 segundos pintando o personagem com luz e depois podia iluminar a cena com mais calma, podendo passar mais de uma vez a lanterna pelo mesmo lugar”, explica.
Sempre que possível, o fotógrafo incluía alguma fonte de luz encontrada no local. Foi o caso do retrato do produtor de farinha de mandioca Cassio Andrade, no qual ele incorporou a luz de uma “pomboca”, nome dado localmente a um tipo de candeeiro artesanal.
As sessões de retrato nunca foram além de cinco ou seis cliques, e Zé Paiva relata que cada foto envolvia não somente o tempo de exposição como também o tempo exigido pelo recurso de redução de ruído para longas exposições da câmera digital – ele usou uma DSLR Nikon em conjunto com uma lente zoom 17-35 mm f/2.8. “Era tudo muito demorado. Os personagens retratados, todos eles com mais de 60 anos, ficavam cansados ao longo do processo”, conta.
Durante a realização do ensaio, Zé Paiva não contou com assistente e por isso não tem imagens de making of. Mas um amigo cinegrafista, Felipe Queriquelli, o acompanhou durante a realização de alguns retratos. O material filmado resultou em um curta de sete minutos editado por Rodrigo Ferrari — que conta um pouco do processo criativo e mostra parte da técnica – veja em https://bit.ly/2BvF8dr.
Na sala de aula
As primeiras experimentações de retrato com light painting nasceram a partir das aulas da professora Denise Camargo, da disciplina de Imagem e Comunicação, que pediu aos alunos da pós-graduação que Zé Paiva fazia (Especialização em Fotografia) que lessem o livro Fotografia: entre documento e arte contemporânea, de André Rouillé. “Uma das coisas que me surpreenderam positivamente nesse curso é que a maioria das disciplinas era teórica. O contato com o livro indicado e com as aulas me abriu uma perspectiva para o lado subjetivo da fotografia”, recorda o fotógrafo.
Como trabalho final, ele produziu um autorretrato em tríptico. Uma das imagens foi feita à maneira de uma foto de estilo ficha policial, frontal e direta, mais objetiva. No outro retrato, ele aparece no escuro, iluminado apenas pela luz de uma lanterna, manejada por ele mesmo. No terceiro, ele ilumina o rosto com a lanterna e se move ao mesmo tempo, dissolvendo seus traços em uma imagem fantasmagórica.
“A intenção era expor essa passagem da objetividade da foto de estilo policial até a completa subjetividade da imagem feita com a lanterna. Uma característica que me atraiu para a técnica de light painting é a construção da luz que depende do percurso que você faz na cena. Então, é uma luz completamente subjetiva, depende da sua performance no momento de iluminar”, ensina Zé Paiva. É nesse ponto que a técnica se encontra com a temática: assim como a atividade dos personagens retratados, a do próprio fotógrafo-iluminador é manual e, por isso, subjetiva, artesanal. O título Iluminados caiu como um luva.
Após ter realizado alguns retratos, Zé Paiva mostrou o trabalho para Denise Camargo, que aceitou atuar como curadora. Ele formatou um projeto de exposição e enviou para alguns editais até ser selecionado como um dos ganhadores do Prêmio Marc Ferrez de Fotografia de 2012, concedido pela Funarte.
Graças à proposta, a série Iluminados teve o poder de criar um envolvimento com a comunidade local. A homenagem feita a personagens marcantes para a cidade foi plenamente retribuída no momento da exposição das fotos, realizada no Museu de Arte de Santa Catarina (MASC), que reuniu 20 retratos e mais o autorretrato tríptico que havia dado origem à ideia inicial da série.
Por fim, a Universidade do Vale do Itajaí (Univali), onde Zé Paiva cursou a pós-graduação, se propôs a encampar o projeto, montando a exposição em uma galeria permanente no campus de Florianópolis, onde tudo começou como uma ideia.
Matéria publicada originalmente em Fotografe Melhor 270