10-2019
Claudia Andujar, um olhar para o povo Yanomami
Exposição no IMS da Paulista e lançamento de livro-catálogo marcam a importância do trabalho corajoso e engajado da renomada fotógrafa
Por Juan Esteves
Claudine Haas – nenhum parentesco com o célebre fotógrafo Ernst Haas – nasceu em Neuchâtel, Suíça, em 1931. Cresceu na região de Oradea, na atual Romênia, e em 1944 escapou com a mãe de volta para a Suíça depois que o pai e parte da família foram assassinados nos campos de extermínio nazistas de Dachau e Auschwitz. Mudou-se sozinha para os Estados Unidos para morar com um tio. Lá, foi trabalhar como guia na ONU, em Nova York, e desenvolveu o interesse pela pintura. O reencontro com a mãe foi em São Paulo, no início de 1955, cidade na qual se radicou com o nome de Claudia Andujar – o sobrenome é do primeiro marido e amigo dos tempos de ginásio, o espanhol Julio Andujar.
De 1966 a 1971, Claudia trabalhou como fotógrafa na icônica revista Realidade, marco do new journalism feito no Brasil – publicação que trazia textos com uma mistura de narrativa jornalística e literária, recheada por ensaios fotográficos de alta qualidade produzidos por ela e por outros grandes fotógrafos, como o americano David Drew Zingg (1923-2000), a inglesa Maureen Bisilliat, o baiano Walter Firmo e o americano George Leary Love (1937-1995) – com quem foi casada e fez parceria em muitos trabalhos.
Mais do que fotógrafa, Claudia Andujar se tornou uma ativista pela causa Yanomami quando, em 1971, registrou a tribo pela primeira vez para a revista Realidade. Um encontro que a faria retornar diversas vezes ao território daquela etnia, que então ainda vivia relativamente isolada. Às primeiras viagens se somaram o interesse pela cultura Yanomami, levando-a ao amadurecimento de seu trabalho, bem como a um envolvimento definitivo na luta pela preservação do povo e da região.
Exposição no IMS
Cerca de 300 imagens em cartaz no Instituto Moreira Salles (IMS) da Avenida Paulista, em São Paulo (SP), resumem esse percurso extraordinário, entre a luta que se põe diante da tragédia e a preservação de uma cultura amazônica exemplar. A curadoria é de Thyago Nogueira, coordenador de fotografia do IMS, que levou quase três anos indo à casa da fotógrafa e pesquisando o arquivo dela. Nogueira conta que de início foi uma questão de entendimento da escala monumental da obra de Claudia, debruçando-se sobre cerca de 40 mil imagens.
Para Nogueira, poucas pessoas se dedicaram tanto à questão indígena. Apenas para entender uma parte: no início dos anos 1970, no âmbito do Plano de Integração Nacional, o governo da ditadura militar começou a construção de um trecho da Perimetral Norte, entre 1973 e 1976, numa política de colonização pública (1976 – – 1978) que invadiu o sudeste das terras dos Yanomami. Em meio a isso, veio a contaminação das aldeias por doenças, alcoolismo dos habitantes, mortes entre indígenas e colonos, situações que colocam Claudia Andujar diante de um dilema entre apenas fotografar ou ajudar a salvar aquela comunidade, o que resultou na sua expulsão da região pela Funai (Fundação Nacional do Índio).
No final dos anos 1970, a fotógrafa articulou com intelectuais e voltou à região como ativista ao lado do missionário Carlo Zacquini e do antropólogo Bruce Albert. Juntos, fundaram a Comissão pela Criação do Parque Yanomami. Foram 13 anos de luta contra forças econômicas poderosas. Uma batalha incansável pela demarcação da terra indígena, vista como a única maneira de garantir a sobrevivência dos Yanomami e seu ecossistema, segundo ela. Finalmente, em 1992, a terra foi homologada às vésperas da conferência-geral da ONU sobre o clima (Rio-20), revelando que Claudia não era somente uma grande fotógrafa, mas também uma articuladora muito hábil.
Tema atual
A exposição Claudia Andujar – A Luta Yanomami e o lançamento de um alentado livro-catálogo homônimo de quase 300 páginas se reveste mde um momento oportuno quando o novo governo federal ameaça novamente intervir em terras indígenas. Motivo para refletir sobre como a fotografia dessa mulher, que completará 88 anos em junho de 2019, passou a instrumentalizar a mobilização política que ultrapassou fronteiras, enveredando-se por programas de educação e saúde.
No livro Marcados (Cosac e Naify, 2009), por exemplo, ela reúne uma coleção de retratos do povo Yanomami feitos para um registro médico. Era necessário identificá-los com plaquinha pendurada no pescoço, com aqueles números de plástico antigos, iguais aos dos passaportes ou das fichas criminais da polícia. Difícil não fazer um paralelo com o Holocausto, com a estrela de Davi costurada nos trajes dos judeus, amarela e bem visível, para não deixar dúvidas. Desse tempo de crueldades restou a Claudia um retrato de um colega de escola por quem ela se apaixonou. Peças que ainda reverberam na fotógrafa e que foram acolhidas ao longo de sua importante obra.
A exposição, que vai até o dia 7 de abril de 2019, ocupa dois andares no IMS e mostra a fase inicial, imagens de 1971 a 1977 em Catrimani, Roraima, onde Claudia acompanhou o dia a dia dos índios na floresta, os rituais xamânicos e retratou os Yanomami – possibilidade oriunda de uma bolsa da Fundação Guggenheim e que contou com a ajuda do missionário Carlo Zacquini, que vivia há tempos entre os Yanomami.
Um interesse jornalístico que se tornou antropológico, segundo Thyago Nogueira. São imagens das primeiras viagens da fotógrafa ao território Yanomami, sua aproximação com a nova cultura e o amadurecimento do trabalho, conforme passava mais tempo na floresta.
Com o apoio de Zacquini, ela pôde se aprofundar na rotina da tribo, acompanhar viagens, festas e expedições de caça. Em um áudio gravado em plena mata, Claudia descreve a experiência: “É claro que cortar um animal é algo sangrento, mas, não sei, acho que já me acostumei com isso, não me choca mais nem acho estranho. É o jeito que as coisas são”.
Importante também é uma nova versão da instalação Genocídio do Yanomami: Morte do Brasil (1989-2018), audiovisual em 16 telas. É inicialmente uma reação aos decretos do ex-presidente José Sarney, que demarcava a terra em 19 “ilhas isoladas”, experiência gráfica com imagens de arquivo de 1972 a 1981. Claudia Andujar diz: “Estou ligada ao índio, à terra, à luta primária. Tudo isso me comove profundamente. Tudo parece essencial. Talvez sempre procurei a resposta à razão da vida nessa essencialidade. E fui levada para lá, na mata amazônica, por isso. Foi instintivo. À procura de me encontrar”.
Matéria publicada originalmente em Fotografe Melhor 269