09-2019
Geometria traça Brasília em Paisagem Concretista
O premiado livro de José Roberto Bassul aborda a geometria da capital federal com o olhar artístico afiado de um arquiteto que virou fotógrafo
Por Juan Estevcs
Carioca radicado em Brasília, José Roberto Bassul lançou recentemente o livro Paisagem Concretista (Editora Matéria Plástica) pelo qual recebeu prêmios internacionais, entre eles, o Gold Book Fine Art do Prix de la Photographie Paris PX3 de 2018. Graça Ramos, doutora em História da Arte, piauiense radicada na capital federal, escreve que as imagens radicalizam pela linguagem no olhar concentrado na expressão abstrata, anulando assim o feitio dos prédios retratados. Há um gosto pela simetria e pelos jogos geométricos, que, segundo ela, se associam inicialmente a uma busca pela lembrança do discurso construtivista que ocorria na época da criação de Brasília.
Bassul foi para a capital federal ainda adolescente, acompanhando o pai, funcionário do Banco do Brasil. Como ele mesmo diz brincando: “Não vim para Brasília, fui trazido”. Como muitos, começou a se interessar pela fotografia cedo, ainda na escola, em cursos extracurriculares com aulas dadas pelo fotógrafo e cineasta goiano Kim-Ir-Sen Pires Leal, a quem ele credita o despertar de seu interesse mais profundo – que o fez montar, inclusive, um laboratório de revelação P&B em casa.
Com desenvoltura, participou desde o final dos anos 1970 de diversos concursos, especialmente os do Núcleo de Fotografia da Funarte, no qual compartilhou exposições com os fotógrafos Walter Firmo, Pedro Vasquez e outros que ele também chama de “notáveis”, como Araquém Alcântara e Luís Humberto. Era um tempo em que num corpo de jurados era possível encontrar Miguel Rio Branco, João Urban ou Ricardo Chaves. “Eu não tinha a medida da importância dessas pessoas, mas tenho revisto isso hoje com muito prazer, pois o mundo está diferente”, comenta.
Entretanto, já na universidade, na década de 1980, deixou a fotografia da juventude para se dedicar à Arquitetura. A profissão foi tomando seu tempo, entrou para o setor público e no passo seguinte se tornou presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB) de Brasília. Eram os tempos da Constituinte de 1987-88 e Bassul apresentou propostas populares de urbanismo. “Vimos que a questão urbana não constava da Constituição. Tivemos que formatar ideias, e isso acabou consumindo o meu tempo”, lembra. Também passou a ser consultor legislativo no Senado para as questões urbanas. Em resumo: a fotografia ficou totalmente de lado.
Paixão que volta
Voltou a lidar com imagens 30 anos depois. Lembra com humor: “Fui dormir analógico e acordei digital”. Estimulado pela esposa, descobriu que a fotografia digital não era uma coisa tão diferente da analógicae em que havia alguns ganhos. Assim, a paixão da juventude retornou e com força, de maneira mais autoral.
Com a fotografia ainda conectada à arquitetura, certo dia ele percebeu que a cidade onde mora, consagrada por tantas imagens, como as do francês Marcel Gautherot (1910-1996), não existia mais. As linhas geométricas limpas da superquadra SQS 108, a primeira da capital, fotografadas por Gautherot foram ocupadas por árvores. Nas capturas feitas na década de 1960, a história era outra, como bem demonstrou o alemão Peter Scheier (1908-1979).
O livro aborda a geometria perdida, aquilo que a natureza havia tomado, ao acaso, quando o fotógrafo buscava afastar as árvores do enquadramento. Na primeira tentativa ele enxergou analogias com os “labirintos” do conterrâneo Hélio Oiticica (1937-1980), uma experiência do artista na favela do Morro da Mangueira, em 1964, inspirada na “arquitetura natural”. Para Bassul, a disposição ortogonal dos edifícios, as aparições e os desaparecimentos dos vazios, os caminhos angulados enfim, várias circunstâncias sugeriam a comparação com Oiticica. “Ao buscar Gautherot encontrei Oiticica”, brinca.
Além desse encontro, é possível também se deparar com uma afinidade com o pai do artista, José Oiticica Filho (1906-1964), personagem ímpar da fotografia modernista.
Concretismo
Como o título propõe, num certo jogo semântico, Bassul lida não somente com o materialismo literal do conteúdo, mas também com o movimento concretista, que surge na década de 1950. Artistas como o suíço Max Bill (1908-1994) vão se relacionar intimamente com autores como Geraldo de Barros (1923-1998), que, em 1951, frequentou a Escola Superior da Forma, em Ulm, Alemanha, onde vigoravam as teorias concretistas de Bill, cuja obra reverbera no Brasil, espelhada na Exposição Nacional de Arte Concreta, no Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo, em 1956.
Há certa analogia com as formas geométricas e concretas de José Roberto Bassul com o Preciosismo, movimento americano da década de 1920, estilo representacional de arestas mais estreitas e simples, identificado com a obra do fotógrafo americano Charles Sheeler (1883-1965) e modernistas como o paulista José Yalenti (1895-1967). Processo que também se agrega a Geraldo de Barros, como em suas “fotoformas”, mas essencialmente
com as obras plásticas construídas com a precisão de recorte de lâminas de fórmica dos anos 1970.
O crítico capixaba Paulo Herkenhoff escreveu que os Metaesquemas, de Hélio Oiticica, de 1957, dialogam com as Recriações, de 1964, de seu pai Oiticica Filho, que tratou a cópia fotográfica como superfície, preparando a composição por meio de sucessivas transparências em negativo e positivo. Nas fotografias de Bassul nota-se um processo análogo quando ele habilidosamente registra a paisagem urbana, eliminando os meios-tons.
A obra de Bassul se distancia do prosaico e do circunscrito às formas. Cria experiências de esvaziamento e continuidade. A relativização propõe o equilíbrio de geometrias, paradoxalmente questionando a descontinuidade, invertendo assim o processo lógico, caracterizado pela proposição de negativo e positivo, aproximando-se assim do “concretismo” proposto pelo título do livro – que em seus princípios afasta qualquer conotação lírica ou simbólica, atendo-se aos elementos plásticos (planos e recortes) sustentados pela sintaxe visual e não discursiva, descartando assim a obrigatoriedade da exata definição como obra arquitetônica, produzida, ironicamente, por um arquiteto.
Matéria publicada originalmente em Fotografe Melhor 264