08-2019
As sutilezas na arte de Flor Garduño
A fotógrafa mexicana, que foi aprendiz de Alvarez Bravo, é uma das grandes atrações do Paraty em Foco 2018. Saiba mais sobre ela
Por Juan Esteves
Uma das atrações internacionais confirmadas para o Paraty em Foco 2018, Flor Garduño está no cânone da fotografia latino-americana ao lado dos consagrados Manuel Alvarez Bravo (1902-2002), Graciela Iturbide e Pedro Meyer, outros expoentes do México.
Nascida em 1957 na capital mexicana, logo cedo se mudou com a família para um lugar nas proximidades, iniciando um contato duradouro com a natureza que resultou na densa produção de fonte vernacular tanto em sua índole conceitual quanto em seu desenvolvimento gráfico, sustentado por um belo equilíbrio tonal e trafegando por meios que vão do nu ao still life, do autoral ao fine art.
Estudante de Artes Visuais em 1976 na Antigua Academia de San Carlos, escola fundada em 1781 na Cidade do México, começou uma busca por aspectos estruturais de forma e espaço, mais precisamente seguindo os ensinamentos de sua professora, Kati Horna (1912-2000), fotógrafa húngara. É fato que Garduño traz a influência seminal desse relacionamento com Horna, cuja bagagem misturava o dramaturgo alemão Bertolt Brecht com a escola alemã Bauhaus, passando por Paris e pela guerra civil espanhola até chegar ao exílio mexicano, quando fugiu dos nazistas – além disso foi influenciada pela proximidade com artistas essenciais como a pintora e escultora inglesa Leonora Carrington (1917-2011) e a pintora espanhola Remedios Varo (1908-1963), duas artistas que viveram na capital mexicana.
Em 1979, aos 22 anos, Garduño interrompeu os estudos para ser assistente de Alvarez Bravo. Numa entrevista ao The New York Times, ela disse que “foi como estudar pintura com Pablo Picasso, e, por dois anos, ele me ensinou não apenas habilidades técnicas, mas o intangível necessário para se tornar um artista sério, como disciplina, persistência e como ser um crítico do meu próprio trabalho”.
Ela deixou o mestre mexicano para trabalhar na Secretaria de Educação de Comunidades Indígenas, então dirigida pela fotógrafa Mariana Yampolsky. Passou a visitar áreas rurais remotas e a conhecer um lado de seu país que poucos tinham acesso – experiência marcante que também influenciou seu trabalho fotográfico.
Diversidade
Uma das séries importantes de Garduño, junto com Mulheres Fantásticas e Natureza Silenciosa, é Bestiarium, que abre a alentada e cuidadosamente impressa publicação
Trilogy (Contrasto, 2010), significativa antologia sobre seu trabalho. São temas que serão abordados pela curadora paulista Rosely Kakagawa durante o festival internacional de fotografia em Paraty, previsto para o período de 19 a 23 de setembro de 2018, que terá a fotógrafa mexicana como uma das estrelas do evento.
Segundo Flor Garduño, Bestiarium surgiu do amor à diversidade e de uma cândida curiosidade pelas infinitas criaturas do mundo. Certamente, uma atração pelos animais adquirida na infância, vivida em uma chácara a cerca de 25 km da capital mexicana. Uma experiência que definitivamente moldou o caráter da fotógrafa – junto com a aura mexicana em torno de sua cultura ancestral associada a um frescor criativo importante, que, por exemplo, levou fotógrafos como os americanos Edward Weston (1886-1958) e Paul Strand (1890-1976) e o francês Henri Cartier-Bresson (1908-2004), entre outros, para o México nos anos 1930. Em entrevista exclusiva para Fotografe, ela salienta que seu país segue sendo uma fonte de inspiração como naquela época. “Riqueza cultural e visual em que se encontram situações que em nenhuma parte do mundo encontrei, ao menos nos países que visitei”, comenta Flor Garduño.
A fotógrafa também expressa em suas imagens a fascinação pela mitologia, das criaturas híbridas entre o humano e o animal às como ela mesma diz, “monstruosas bestas”. Para o curador, historiador e crítico de arte mexicano Francisco Reyes Palma, as imagens de Flor Garduño se encontram na intersecção do que se pode descrever como fotografia do surpreendente: “uma luz difusa de vida que contém pequenas coisas”, comenta ele.
Diferentemente do fotógrafo catalão Joan Fontcuberta, cuja manipulação no seu Bestiario (Siruela, 1997) se dá na imaginação de criaturas inexistentes, tendo como base a literatura, Flor Garduño é mais sutil. Ela busca as representações em festas populares em que os foliões estão fantasiados de animais, detalhes de instrumentos musicais encourados, still life de estatuetas de animais, bem como no que poderia ser chamado de delicados encontros entre humanos e animais, em que a iluminação precisa e aveludada (também presente em outros trabalhos dela) se encarrega de desenhar um contorno mais construtivo no amálgama dos personagens.
Garduño promove a relação entre seus personagens humanos, normalmente a família ou vizinhos, com animais, vegetais e minerais que se transformam em seus arquétipos. Há certa ancestralidade evocativa nos elementos da natureza, ou melhor, em seus “diferentes reinos”, como salienta Reyes Palma. Para ele, o ponto de vista dela não é fácil de ser concebido como um trabalho conceitual, uma vez que a teatralidade promove uma espécie de museografia interna em que a dicotomia se sustenta no que é real e no que é imaginação. A sugestão é de um enigma que está sempre presente, sustentado pelo seu virtuosismo fotográfico.
Erotismo sutil
No portfólio Mulheres Fantásticas a nudez louva a interação entre a natureza e o humano de maneira delicada, mas com sutil toque de erotismo. Traz uma luz requintada, obtida naturalmente. Ao lado de sua casa, a fotógrafa mantém um rústico estúdio que dá passagem à luz natural. É uma clara celebração do universo feminino e do corpo da mulher com argumentos inerentes ao espírito imaginativo da artista. “A beleza passa a existir e deixa de ser inacessível”, diz Graciela Oliveira, uma de suas modelos.
Em contrapartida, uma crescente violência contra as mulheres no México provocou debates no meio fotográfico, como o ocorrido por conta do livro Codex México 1986-
-2016 (Editora RM, 2017), do francês Antoine d’Ágata. Em maio deste ano ele recebeu profundas críticas relacionadas à violência e misoginia feitas pelo colecionador, curador e escritor americano Brad Feuerhelm, editor do site American Suburb X (ASX).
Para Flor Garduño as mulheres sempre foram relegadas, tanto no México como na América Latina. Agora há um recrudescimento, grande parte por conta do fracasso das autoridades e política em geral. “Ao fotografar os nus, sempre fiz isso com muito respeito e de forma lúdica, pois vários deles foram minhas projeções, e graças à cumplicidade de meus amigos (os modelos) e minha filha, pude concretizar muitos dos meus sonhos e também reviver os mitos milenares”, explica.
Ela conta que em sua vida como fotógrafa trabalhou em diferentes assuntos, como o nu, a natureza, o retrato e os mitos na América Latina. “Dei atenção também à imagem e à importância do animal em nossas culturas, como tem sido importante em culturas milenares como a do Egito e a da Índia”, comenta. Flor Garduño salienta ainda que a série Natureza Silenciosa, que completa sua trilogia, tem algo de muito íntimo. “Confesso que criei essas fotografias para mim mesmo, para manter o meu espírito lúdico ao longo de todos esses anos”, afirma.
A fotógrafa mexicana expôs suas imagens em alguns dos principais museus e galerias mundo afora. No Brasil, a primeira exposição dela foi durante a Bienal de Fotografia de Curitiba, em 1996. Depois, seu trabalho foi apresentado no Memorial da América Latina (2005) e no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (2008).
Matéria publicada originalmente em Fotografe Melhor 263