09-2017
Anne Gedes, a inventora do newborn
Há 34 anos, a fotógrafa australiana Anne Geddes decidiu fotografar profissionalmente recém-nascidos. Inicialmente, nenhum editor acreditou no sucesso desse trabalho. Quando fez o primeiro calendário, em 1992, ela e o marido venderam-no de porta em porta e juntaram US$ 20 mil, doados a instituições de caridade. No ano seguinte, Anne fez outro calendário e imprimiu 20 mil exemplares, que esgotaram em três semanas. Com o dinheiro, foram impressas mais 20 mil cópias – que, novamente, esgotaram em poucas semanas. Um editor de visão mais ampla a procurou e hoje ela é a maior referência no segmento, em escala global. Atualmente, milhares de profissionais pelo mundo atuam nesse ramo consolidado na fotografia, que, inclusive, ganhou nome próprio: newborn.
Fotografe entrevistou Anne Geddes, que vive em Sydney, na Austrália. Mesmo com uma agenda extremamente lotada, ela foi muito receptiva. Acompanhe o bate-papo com ela.
Fotografe – Você começou a trabalhar com fotografia em 1983. O que a atraiu para essa área e em que momento decidiu seguir a carreira?
Anne Geddes – Nunca tinha pegado em uma câmera com objetivos profissionais até os 25 anos. Não havia cursos de fotografia nas escolas que frequentei. Mas sempre fui fascinada pelo assunto – particularmente por retratos. Trabalhei com televisão no começo dos meus 20 anos, e tinha um laboratório fotográfico no estúdio. Lembro-me de sempre ser atraída para lá, especialmente pelo cheiro dos compostos químicos e todo o processo mágico de revelar um filme e ver a imagem surgir. Até aquele momento, nunca tinha pensado que uma carreira como fotógrafa era uma opção.
Como veio a inspiração para começar a trabalhar com fotografia de crianças?
Antes de fazer meu primeiro calendário com fotografia de crianças, em 1992, fiz retratos por dez anos. Isso me ensinou a trabalhar com pessoas e, particularmente, a como lidar com crianças de todas as idades. Foi durante esse tempo que percebi que me encantava com esse tema. Não lembro de ser uma decisão consciente. Mas me apaixonei por esse tipo de fotografia. Bebês são um tema incrivelmente emocionante e, como resultado, meu trabalho é intensamente pessoal. Sinto que bebês e crianças expressam e ilustram valores profundos e universais, como beleza, confiança, amor, pureza e inocência. Bebês também representam esperança. Eles não são apenas um tema lindo e significativo, mas como artista vejo-os sempre como inspiradores. São novos cidadãos do mundo, sem noção alguma do que é ódio, diferenças raciais, políticas, dogmas ou intolerâncias religiosas.
Você enfrentou preconceitos por essa escolha?
Quando eu estava começando minha carreira, as pessoas simplesmente diziam que eu fotografaria crianças por ser mulher. E outros fotógrafos comentavam que eu estava fotografando bebês porque era iniciante, como se bebês não fossem um tema legítimo de um artista estabelecido. Sempre fiquei confusa com essa atitude. Pessoalmente, não posso imaginar um tema mais importante, significativo e recompensador do que esse.
Por que você acha que isso acontece?
Muitas pessoas acreditam erroneamente que fotografias de bebês são de alguma forma menos valiosas como trabalhos de arte. Quando eu estava desenvolvendo meu primeiro calendário, meu editor disse: “Vou te dar um conselho: apenas fotografar bebês nunca vai dar certo. Você precisa aumentar seu portfólio com fotos de adultos e animais”. Por dentro, sempre fico brava com as comparações que as pessoas adoram fazer entre fotografia de crianças e animais. Não suponho que tenha ocorrido a alguém perguntar ao renomado fotógrafo de paisagens e ambientalista Ansel Adams, por exemplo, se ele ia começar a fazer cliques de filhotes de gatos.
Você é autodidata. Como se tornou profissional?
Aprendi puramente por tentativa e erro e por ser apaixonada pelo meu tema, o que é essencial. Quando comecei a ver a fotografia como uma carreira, meu marido Kel e eu estávamos vivendo em Hong Kong, pois tinha sido oferecida a ele uma posição de diretor de programação para um estúdio de TV local. Foi uma época importante, pois tive a oportunidade de reavaliar completamente meu futuro profissional. Decidi dar esse salto e estabelecer um negócio pequeno, de retratos. Comecei fotografando amigos e filhos de vizinhos em suas próprias casas, jardins ou parques locais. Inicialmente, eu era muito inexperiente. Mas gradualmente ganhei confiança e aprendi a mexer em meu equipamento.
Como você achou mães dispostas a deixar seus bebês serem fotografados, em 1983, quando a fotografia de recém-nascidos não era tão conhecida como hoje?
Fotografia de bebês é popular desde que a fotografia existe. Sempre serei muito grata às minhas primeiras clientes, que provavelmente não tinham ideia de como eu estava nervosa e como era inexperiente. Era a única forma de começar, e geralmente pais adoram ter seus filhos fotografados. Demorou alguns anos para que eu desenvolvesse meu próprio estilo, o que é incrivelmente importante para um fotógrafo. No começo, trabalhava nas locações que podia. Foi apenas quando comecei a fotografar em um ambiente de estúdio que tudo se encaixou. Eu também me sentia criativamente desafiada, entrando em competições com meus colegas, vendo o trabalho de outros profissionais e recebendo retorno pelo meu próprio trabalho.
Como foi montar um estúdio em 1986, enquanto criava suas filhas?
Meu primeiro estúdio foi, na verdade, a garagem de casa em Melbourne, na Austrália. Minha filha Stephanie tinha dois anos na época. Era algo pequeno, mas ao longo da história muitos negócios bem-sucedidos foram iniciados em garagens. Depois do nascimento da minha segunda filha, Kelly, percebi que, com duas crianças pequenas, era ideal ter um estúdio tão perto.
Quais são as particularidades de trabalhar com bebês?
A parte mais importante ao fotografar recém-nascidos e bebês é ter um alto nível de paciência e compreensão. Cada passo do processo é preparado para garantir o conforto do bebê. Também dedico tempo para garantir que as mães sejam bem cuidadas e deixem o estúdio com uma experiência positiva. Sendo mãe, estou ciente do quanto é cansativo e emocionalmente exaustivo viver aquelas primeiras semanas de maternidade.
Como é o processo para fazer as fotos?
Cada ensaio é diferente, mas a base é a mesma. Assim que os pais chegam, eu e minha equipe nos apresentamos e mostramos o estúdio. Passamos boa parte do tempo conhecendo os pais e conversando com eles sobre seus filhos, para que todos fiquem confortáveis. Depois, despimos os bebês e os vestimos com a fantasia que usarão durante o ensaio. Enrolamo-os em um cobertor para que fiquem quentinhos e os espero serem alimentados. Nesse ponto, depois de niná-los um pouco, a maioria dos recém-nascidos dorme. O estúdio é sempre quentinho e acolhedor. Gosto de ter música clássica tocando baixinho para ajudar a criar uma atmosfera calma. O ensaio, em si, dura menos de cinco minutos depois que o bebê está posicionado. Os pais sempre ficam impressionados com a rapidez.
Alguém a ajuda com as fotos?
O processo conceitual é feito apenas por mim, como é o trabalho para a maioria dos artistas. Contudo, uma vez que tenho a foto em minha mente, conto com um pequeno e dedicado time que me ajuda a trazê-la à vida. Desde meu primeiro livro, Down in the Garden, trabalho com as mesmas pessoas de confiança. Meu estilista e eu trabalhamos juntos há 20 anos. No estúdio, durante o ensaio, também tenho alguns ajudantes essenciais. Mas gosto de manter meu time com o menor número de pessoas possível. Minhas filhas, que agora são também fotógrafas, trabalham comigo no estúdio. Kelly, a mais nova, é minha diretora de estúdio. Stephanie está encarregada da parte de mídia, mas ajuda regularmente em ensaios.
Qual equipamento você usa nas suas fotos?
Minha primeira câmera foi uma Pentax K1000, que ainda tenho. Mas minha carreira de retratista começou com uma médio formato Mamiya RB 6×7, progredindo para uma RZ 6×7 e depois para câmeras Hasselblad, que uso desde então, sem contar minha grande formato Sinar 4×5, com a qual fotografei a maioria das imagens do meu livro Pure. A mudança do filme para o digital foi uma decisão difícil no nível emocional, mas agora fotografo apenas com digital. Atualmente, uso uma Hasselblad H4D60.
O que a inspira quando você vai montar um cenário?
Tudo e qualquer coisa me inspira. Colecionei uma grande quantidade de livros de não ficção, romances, biografias e, claro, fotografia. Música e literatura sempre são grandes fontes de inspiração, assim como viagens e a natureza. Sempre carrego um caderno comigo e tenho vários que já estão cheios de desenhos e ideias. Meus desenhos deixam muito a desejar, mas sempre capturam a mensagem.
Há uma foto de que gosta mais?
Não tenho nenhuma imagem favorita, mas as melhores sempre parecem ter um elemento de magia nelas. Fiz três ensaios ao longo da minha carreira em unidades de cuidado intensivo para neonatais, em diferentes hospitais, e as imagens feitas lá são muito especiais. As pessoas que trabalham diariamente com bebês prematuros são verdadeiramente inspiradoras, assim como os bebês, que são tão pequenos e já têm tanta força e vontade de viver.
Qual foi a foto mais difícil que você já fez? Por quê?
Como qualquer fotógrafo, sempre há trabalhos que não saem exatamente como foram planejados. Uma das minhas fotos mais conhecidas, e uma das mais antigas, é 123 Pots, aquela dos bebês nos vasos. A organização para tornar essa imagem possível foi bem difícil, para dizer o mínimo. O ensaio fora programado para acontecer seis meses antes. Tinha calculado que precisaria de 160 bebês de seis a sete meses para conseguir o impacto que queria. E tinha de estar preparada para o fato de que talvez 30 ou 40 bebês poderiam se recusar a ficar sentados dentro dos potes durante o ensaio. Eu procurei muitas locações e finalmente decidi que seria em uma grande estufa, localizada em um centro de jardinaria local. O lugar não era perfeito apenas como cenário para a imagem, mas também tinha a estrutura para acomodar todos os bebês ao mesmo tempo. Uma produção para uma fotografia dessa escala requer muito cuidado e atenção com detalhes.
Por que o atraso de seis meses?
Faltando apenas alguns dias para o ensaio, tivemos uma epidemia de sarampo. Bebês de seis meses não são imunes a sarampo, e é claro que ter 160 crianças ao mesmo tempo em uma estufa quente simplesmente não era uma opção. Cancelei imediatamente todo o ensaio, o que foi uma loucura, já que todos que estavam programados para vir foram informados de que o ensaio seria adiado. Houve muitas mães desapontadas, pois quando o ensaio fosse remarcado, os bebês já estariam muito velhos para a foto. Encarei a possibilidade de ter de localizar e agendar outros 160 bebês. De fato, quase não remarquei o ensaio pela falta de coragem. Pela quantidade de planejamento e trabalho que já tínhamos tido, estava começando a ter sérias dúvidas, não apenas se o conceito tinha mérito, como também se era alcançável. Porém, a ideia de todas aquelas cabecinhas carecas saindo de potes de flores finalmente me impulsionou a ir atrás, e certamente valeu a pena no fim.
Você já tem 34 anos de fotografia de crianças. Como se sente olhando para trás e vendo tudo que conquistou nessas três décadas?
Sinto-me muito orgulhosa. Sou muito sortuda por ter tido a oportunidade de seguir meus sonhos e paixões, e espero ter criado um trabalho que vai ter um efeito profundo e positivo no futuro. Minha vida fotográfica sempre foi rica e recompensadora, e tive o grande privilégio de ter um contato pessoal próximo com tantos bebês e famílias. Bebês, e particularmente recém-nascidos, têm uma grande essência afirmativa e estimulante. Meu trabalho e minha vida pessoal foram enriquecidos enormemente pela presença constante deles.
Qual foi o retorno mais significativo do seu trabalho?
Estou incrivelmente orgulhosa pelo fato de que, ao longo dos anos, fui capaz de contribuir para aumentar o nível de consciência sobre problemas de abuso infantil e negligência. Meu marido Kel e eu, por meio da Geddes Philanthropic Trust, temos ajudado muitas entidades ao redor do mundo que estão trabalhando nessa área. Mais recentemente também me associei à iniciativa Every Woman Every Child, das Nações Unidas, e sou a representante global da Shot@Life, uma campanha que tem como objetivo fornecer vacinas para crianças abaixo de cinco anos nos países subdesenvolvidos.
Para acompanhar seu marido, você mudou de casa várias vezes. Para Hong Kong, em 1983; para a Austrália, no ano seguinte; para a Nova Zelândia, em 1988; e, de volta para a Austrália, em 1992. Isso alguma vez afetou seu trabalho?
Sou muito afortunada por ter vivido em diferentes cidades. Como todo mundo sabe, mudanças podem ser incrivelmente estressantes, mas é uma parte importante do amadurecimento. Contanto que nossa família estivesse unida, estávamos felizes para mudar para onde fosse preciso. A maravilha da fotografia é que você pode trabalhar em qualquer lugar, o local não faz diferença. Há bebês lindos em todo lugar.
As redes sociais têm alguma influência no seu trabalho?
Eu adoro falar com meus fãs pela página do Facebook. É um ótimo meio de me comunicar não apenas em termos de o que estou fazendo atualmente, como também meus pensamentos e posicionamentos em determinados assuntos. Meus objetivos filantrópicos também foram beneficiados, já que atualmente é tão fácil mandar uma mensagem para um grande número de pessoas.
Fotos: Anne Geddes