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01-2017

Imagens da triste história do jegue

Olhar Global   /  

Era uma vez um animal que carregou as pedras na construção das pirâmides do Egito, levou a Virgem Maria a Belém, na Galileia, para dar à luz Jesus Cristo, que anos depois o escolheu para acompanhá-lo durante seus dias no deserto. Mais de mil e quinhentos anos depois se tornou o maior companheiro do nordestino brasileiro ao transportar pessoas e cargas. O jegue (também chamado de jumento ou asno) já teve seus dias de glória. Hoje, vive no ostracismo, abandonado pelas estradas de várias cidades do Nordeste, pois está sendo trocado gradualmente pelas motocicletas e servindo de comida para presidiários. O fotógrafo Marcelo Buainain fez o documentário Era Uma Vez… a fim de retratar a triste realidade desse símbolo nordestino.

“Estava em busca de um tema que pudesse representar a realidade nordestina. Quando li o artigo “Ao jegue, com carinho”, de Gilles Lapouge, no jornal O Estado de S. Paulo, fiquei muito sensibilizado com a questão e achei que poderia ser um bom tema para voltar a fotografar. E não tenho dúvida de que essa foi a melhor escolha”, lembra o mato-grossense que mora em Natal (RN).

Quando entrou em contato com a questão dos jumentos, começou a pesquisar sobre o tema e a estabelecer relações com ONGs, como a DNA (Defesa da Natureza e dos Animais), que tratam da questão para mapear onde poderia fotografar o abandono desses animais. A primeira viagem ao interior do Rio Grande do Norte, pela região do Seridó, onde encontrou vários jegues abandonados pelas estradas, ele fez por conta própria.

A continuação do trabalho, para a qual viajou ao interior da Bahia e do Ceará, foi custeada com o dinheiro recebido do Prêmio Marc Ferrez de Fotografia, que ganhou com o projeto. Segundo ele, Era Uma Vez… é um registro sobre um personagem que exerceu papel fundamental para o desenvolvimento do Nordeste. “É um resgate fotográfico que nos faz recordar a importância social, econômica e cultural desse animal, que hoje está condenado ao ostracismo ou ao abate nos frigoríficos”, afirma.

Equipamento

O fotógrafo passou cerca de um ano registrando a situação dos animais pelo Nordeste acompanhado sempre de uma Fuji X100S com objetiva fixa de 35 mm. “É uma câmera leve e discreta. Dei um passo grande da minha vida quando consegui me libertar das reflex”, diz. Como ele já tinha o intuito de fazer o trabalho todo em P&B, uma característica do trabalho dele, Buainain adaptou a câmera para visualizar as imagens no visor também em escala de cinza, embora os arquivos fossem registrados em cor. “O jumento é um animal cinza, então, não havia por que fotografar colorido. Não vi nada do processo em cor. Quando importei para o Lightroom, já convertia direto os arquivos também”, explica.

Para registrar os jegues selvagens no litoral do Rio Grande do Norte de uma distância maior, o fotógrafo usou a Fuji X Pro 1 e adaptou as objetivas Carl Zeiss Planar 45 mm f/2 e Sonnar 90 mm f/2.8 que usava décadas atrás em sua antiga Contax G2. “Em geral, o jumento é um animal dócil, por isso conseguia me aproximar para fotografá-lo. Mas os que foram criados soltos tornaram-se ariscos e tive de fotografá-los de longe”, conta.

Trabalho de edição

Ao todo, Buainain fez cerca 12 mil cliques e, sem dó, deletou nove mil. “Não me serviam absolutamente em nada”, afirma. Muitas das imagens foram dispensadas por estarem sem foco. A Fuji X100S, segundo o profissional, é uma câmera que tem dificuldade em fazer o foco em paisagens de pouco contraste. Situação na qual compreendia o tema definido pelo fotógrafo – o sertão nordestino é composto basicamente de tons terrosos e o jegue é um animal de pelagem cinzenta. “Todo equipamento tem vantagens e desvantagens. Apesar disso, para o tipo de trabalho que estava desenvolvendo, a câmera tinha mais vantagens. Ela cabe na palma da mão ou dentro do bolso da camisa. Isso compensava a dificuldade para fazer o foco”, explica ele, que supria a deficiência fazendo mais imagens até conseguir um registro nítido.

Quando conseguiu selecionar 500 fotos, convidou o fotógrafo gaúcho Tadeu Vilani, de quem admira o trabalho, para ajudá-lo a selecionar as cerca de 80 imagens que estão no livro. Vilani viajou do Rio Grande do Sul ao Rio Grande do Norte para a missão. “A edição é um drama para a maioria dos autores. Mas é um processo vital para a solidificação de uma obra e que fica melhor se feito com mais pessoas. Por isso gosto de pedir a opinião de profissionais que admiro porque preciso de um olhar isento”, diz. Foram cinco dias de trabalho para fazer a seleção que depois foi consolidada com a opinião do fotógrafo potiguar Giovanni Sérgio.

No livro Era Uma Vez… Marcelo Buainain conta a história do jegue enfatizando a sua servidão em relação ao homem, como o fato de acompanhá-lo nas empreitadas da roça. Mostrou poéticas cenas do animal ainda filhote e a convivência dele com as crianças até chegar à triste realidade de desprezo e de abandono pelas estradas. Tudo alinhavado com depoimentos de personagens que encontrou durante as saídas fotográficas. O fotógrafo ainda escolheu o papel offset, que é pesado e absorve bastante tinta, para dar o caráter rústico que pretendia à publicação.

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