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09-2016

Vivian Maier, uma babá quase perfeita

Olhar Global   /  

Ela foi descoberta por acaso e comparada a grandes mestres da fotografia. Sua obra chegou ao público por meio de livros e um documentário que concorreu ao Oscar

Por Karina Sérgio Gomes

Na década de 1960, Vivian Maier passeava pelas ruas de Chicago com uma Rolleiflex pendurada no pescoço. Os registros que fazia da cidade são considerados, hoje, do mesmo nível de fotógrafos como Walker Evans, Robert Frank e Diane Arbus. O que diferencia Vivian desses grandes mestres é o fato de ela ter passado a vida toda no anonimato. Nos anos em que disparava sua Rolleiflex para captar flagrantes das ruas do noroeste de Chicago, Vivian Dorothea Maier ganhava a vida trabalhando como babá.

Todo o trabalho fotográfico dela continuaria desconhecido se não tivesse sido encontrado ocasionalmente pelo corretor de imóveis e historiador John Maloof, que revelou ao público parte do acervo dessa fotógrafa até então desconhecida.

O trabalho dela rendeu o documentário A Fotografia Oculta de Vivian Maier, que concorreu ao Oscar de 2015. E com o material foram produzidos três livros: Vivian Maier – Uma fotógrafa de rua (publicado recentemente no Brasil pela Editora Autêntica), Vivian Maier: Self-Portraits (que reúne os muitos autorretratos da babá) e Vivian Maier: Out of Shadows (a biografia dela). E Maloof promete mais uma publicação com fotos de Vivian até o fim de 2014.

Material achado ao acaso

Maloof tinha 26 anos e presidia a Associação de Preservação Histórica do setor noroeste de Chicago. Procurava por material iconográfico da região para elaboração de um livro, cujo objetivo era promover o local no mapa imobiliário da cidade. Para conseguir isso, Maloof dedicava algumas horas a pesquisas em antiquários. Certa vez, em 2007, encontrou uma caixa com velhos negativos e fotografias de cenas urbanas de 1960, na casa de leilões e móveis antigos RPN (iniciais dos donos da empresa Roger, Paul e Nancy). Arrematou a caixa com 30 mil negativos e 1.600 rolos de filmes não revelados por US$ 400.

Em casa, analisando o que tinha comprado, viu que as imagens não correspondiam com a região que estava pesquisando e deixou o material guardado em um armário por cerca de um ano. Até que um dia resolveu olhar novamente e, mesmo sem nenhum conhecimento sobre fotografia, ficou impressionado com a qualidade das fotos feitas por Maier. Flagrantes de cenas urbanas, retratos de crianças e transeuntes – sensíveis registros da vida cotidiana de Chicago nos anos de 1950 e 1960.

Ficou curioso e fez uma busca na internet digitando o nome que tinha nas etiquetas dos envelopes que continham na caixa: Vivian Maier. Nada foi encontrado. Nem mesmo na gigantesca base de dados do Google havia qualquer vestígio de quem era aquela mulher.

Notícia da morte no jornal

A primeira notícia que encontrou sobre a fotógrafa veio apenas no ano seguinte, em 23 de abril de 2009, ao ler no jornal Chicago Tribune a nota de pesar: “Vivian Maier, francesa de origem e moradora de Chicago nos últimos 50 anos, faleceu em paz na segunda-feira. Foi uma segunda mãe para John, Lane e Matthew. Sua mente aberta tocou a todos que a conheceram. Sempre pronta a dar sua opinião, um conselho, uma ajuda”. Aquela pequena nota foi como uma faísca em um baú de pólvora e transformou a vida de Maloof.

Ao procurar pelos nomes encontrados no anúncio fúnebre, descobriu que John, Lane e Matthew Gensburg eram irmãos e Vivian Maier fora babá deles por 17 anos – profissão que exerceu por 40 anos também nas cidades de Nova York e Los Angeles. Na casa dos Gensburg nunca se desconfiou de que Vivian fotografava nas horas livres e, às vezes, quando saía para passear com as crianças. Os filmes eram revelados em um banheiro transformado em laboratório.

Tudo o que Maloof descobriu a partir dessa primeira pista foi que Maier nasceu em Nova York em 1926, era filha de pai austríaco e mãe francesa, que se separaram quando ela ainda era um bebê. Maier morou na França, na cidade de Saint Julien-en-Champsaur, parte da infância e adolescência, onde também provavelmente começou a fotografar com a câmera amadora Kodak Brownie.

Ninguém sabe ao certo como ela aprendeu fotografia. Mas quando voltou para Nova York, em 1951, aos 25 anos, passou a fotografar compulsivamente – e também deu início à vida dupla de babá e fotógrafa diletante.

Quando se aposentou e passou a viver em uma casa de repouso, todos os seus pertences, inclusive o material fotográfico, foram guardados em um desses depósitos particulares. Depois de um tempo, Vivian deixou de pagar o aluguel e foi assim que as três Rolleiflex (3.5T, 3.5F e 2.8C), uma Leica IIIC, uma Ihagee Exakt,uma Zeiss Contarex, além de chapéus, roteiros de viagens, cartas, recortes de jornais sobre crimes da cidade, um gravador e um par de sapatos vermelhos e muitos rolos de filmes foram parar em casas de leilão.

Revelação e ampliação das fotos

Cinco meses depois de descobrir um pouco sobre a vida da personagem e que aquela fotógrafa genial não passava de uma simples babá, pensou: “O que devo fazer com essa coisa toda?”. A fim de compartilhar sua angústia, criou um grupo de discussão no Flickr, rede social voltada para fotógrafos, em que contava como tinha adquirido as imagens e dava o link de um blog que tinha criado para mostrar as fotos de Maier.

Como Maloof não tinha conhecimento de fotografia, perguntava aos membros do grupo: “Esse tipo de material tem qualidade suficiente para uma mostra? Ou um livro? É comum esse tipo de obra surgir assim do nada? Qualquer dica será bem-vinda”. Foram 752 respostas recebidas com dicas e sugestões do que fazer com o material. A maioria delas era confirmando a qualidade das fotos feitas pela babá.

Obcecado pela personagem, largou o ofício de corretor de imóveis e historiador para estudar fotografia, principalmente o trabalho de Maier. Transformou o sótão de sua casa em um laboratório para revelar as centenas de rolos de filmes deixados por ela – que conseguiu arrematar em outros lotes da casa de leilão.

No rastro de baba-fotógrafa

Ao analisar os negativos e as folhas de contato, Maloof descobriu que Vivian não fotografava ao acaso. Ele ficou surpreso ao descobrir que ela conseguia captar com precisão uma cena com apenas um clique. Seguindo todos os rastros, o pesquisador encontrou outras famílias para as quais Vivian trabalhou. Soube que a fotógrafa não aceitava trabalhar em locais muito longe do centro da cidade – onde ia para fazer os registros –, que tinha personalidade reservada e só se aproximava das pessoas com um intuito: fotografar.

Algumas das pessoas que conheceram Maier e a viam caminhar com a câmera pendurada no pescoço acreditavam que a babá fazia apenas tipo e que a Rolleiflex deveria estar sem filme. Mas ela era uma fotógrafa compulsiva. A coleção de Maloof tem mais de 3 mil fotos impressas, 150 mil negativos, centenas de rolos não revelados e filmes de 8 mm.

Outro colecionador que detém uma parte da obra de Vivian é Jeffrey Goldstein, dono de 16 mil negativos, 1.500 slides e mais 30 curtas de 8 mm. De acordo com o pesquisador, quando Maier ia comprar material fotográfico, sempre se apresentava com um nome diferente.

Ela não se casou nem teve filhos. Segundo Geoff Dyer, que assina o prefácio de Vivian Maier – Uma fotógrafa de rua, a fotógrafa é um caso extremo de descoberta póstuma: “alguém que só existe unicamente das coisas que viu”.

E Maier não viu apenas cenas de Chicago. A fotógrafa viajou por vários lugares do mundo. Em 1951, no ano em que voltou para os Estados Unidos, visitou Cuba e o Canadá. Sete anos depois, fez uma viagem de quase três meses pelas Américas Central e do Sul – passando inclusive pelo Brasil, onde visitou São Paulo, Rio de Janeiro e a Amazônia. No ano seguinte, em 1959, fez uma viagem longa, de seis meses, pela Europa, Oriente Médio e Ásia.

Uma merecida fama póstuma

Embora o trabalho de Vivian Maier não tenha sido reconhecido em vida (aliás, longa, pois ela morreu no centro de Chicago, em 2009, aos 83 anos, depois de ter escorregado e batido a cabeça), na primeira exposição em que Maloof conseguiu exibir as fotos da babá, em 2011, o crítico David W. Dunlap escreveu um longo artigo no jornal The New York Times, em que dizia: “Trata-se de uma das fotógrafas de rua mais sagazes dos Estados Unidos. As paisagens urbanas da senhorita Maier conseguem captar ao mesmo tempo a forte marca local e os momentos paradoxais que dão à cidade seu pulso. As pessoas em seus frames são vulneráveis, nobres, derrotadas, orgulhosas, frágeis, ternas e, não raro, bem cômicas”.

E o que se tem acesso hoje – três livros e um documentário de 84 minutos – é apenas a pontinha do iceberg dessa intrigante personagem que fazia interessantes autorretratos mirando-se em espelhos pela cidade. Maloof ainda tem um longo trabalho pela frente e, certamente, mais boas descobertas dessa grande fotógrafa que se escondia na simplicidade de uma babá.

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