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10-2019

Retratos sob a luz de uma ideia

Olhar Global   /  
Antonio Bitencourt de Matos, luthier. Foto: Zé Paiva

Antonio Bitencourt de Matos, luthier. Foto: Zé Paiva

Conheça o processo criativo que deu origem ao premiado ensaio Iluminados, em que o fotógrafo de natureza Zé Paiva retratou personagens com a técnica do light painting

Por Érico Elias

Zé Paiva é um fotógrafo gaúcho radicado em Florianópolis (SC) desde 1985. Depois de trabalhar para o mercado publicitário por alguns anos, tendo um dos estúdios mais importantes da capital catarinense, migrou para a fotografia de natureza, na qual se firmou como um dos principais nomes do Brasil, publicando vários livros, produzindo imagens para fine art e compartilhando conhecimento por meio de workshops e expedições. Durante um curso de pós-graduação que ele fazia nasceu a ideia que o levaria a experimentações e a uma nova especialidade: retratos.

A série Iluminados é composta por 20 imagens de moradores de Florianópolis, todos com um mesmo perfil: pessoas com mais de 60 anos conhecidas na cidade por suas habilidades com o trabalho manual. Zé Paiva utilizou a técnica de light painting para retratá-los, uma decisão ousada e em nada gratuita.

Os personagens foram escolhidos a partir de uma teia de contatos tramada pelo fotógrafo, começando por pessoas que eram suas conhecidas e depois se ampliando com indicações de amigos ou terceiros, que foram tomando conhecimento do projeto. Ele queria ir além dos personagens mais característicos da cidade, como a rendeira e o pescador. Também buscou representar a variedade de origens dos habitantes de Florianópolis, gente de Estados e países diversos. “O trabalho acabou tendo essa dimensão antropológica”, diz Zé Paiva.

A realização de cada retrato envolveu aspectos psicológicos, cenográficos e técnicos, que desafiaram o fotógrafo especializado em natureza. Os aspectos psicológicos estão ligados à interação entre retratista e retratado, fundamental nesse segmento. Zé Paiva conta que o primeiro desafio foi tentar explicar qual era o projeto e a intenção ao personagem para convencê-lo a participar, o que não ocorreu em todos os casos.

“A maioria das pessoas eu tive que visitar e conhecer melhor em uma primeira conversa, para só então marcar um dia para fazer a foto. Nenhuma das imagens do projeto foi feita sem o mínimo de uma hora de conversa preliminar. Para quem não está acostumado com a técnica fotográfica, é difícil explicar como funciona o light painting. Muitas vezes, a pessoa acha que você é uma espécie de bruxo, quando mostra a imagem e fala que ela foi feita no escuro, com uma lanterna”, informa.

Jaime Francisco dos Santos, fazedor de balaios e cestos. Foto: Zé Paiva

Jaime Francisco dos Santos, fazedor de balaios e cestos. Foto: Zé Paiva

Imagem e informação

O envolvimento com o retratado evolui para a cumplicidade no momento do clique. É aí que entram os aspectos cenográficos, como montar a cena, posicionar e dirigir o modelo. No contexto da série Iluminados, que visava exaltar o papel do trabalho manual, Zé Paiva realizava uma busca de objetos que pudessem indicar a atividade de cada personagem retratado.

“Tinha que reunir o máximo de informações em uma só imagem. Para construir a cenografia pedia para conhecer um pouco da casa e descobrir objetos interessantes. Aí muitas vezes entrou a interação e a participação dos personagens, dando sugestões ou escolhendo os objetos de sua predileção”, recorda ele.

Um caso curioso foi o do pintor Rodrigo de Haro, para quem o fotógrafo havia escolhido uma bela cadeira antiga para se sentar. Na hora de fazer o retrato, ele preferiu sentar-se em uma cadeira de plástico, colocou para o lado a cadeira antiga e nela posicionou uma bandeira do Brasil Império (veja na página XX). “Foi um personagem que ajudou na  criação do cenário”, diz Zé Paiva.

Alésio  dos Passos Santos, cultivador de plantas medicinais. Foto: Zé Paiva

Alésio dos Passos Santos, cultivador de plantas medicinais. Foto: Zé Paiva

Aspectos técnicos

O fotógrafo escolheu um enquadramento vertical, ideal para retratos, e objetiva grande angular, de forma a captar os objetos em cena ao redor do personagem. O princípio do light painting consiste em deixar o obturador da câmera aberto em modo B no escuro total e iluminar a cena com uma ou mais lanternas. A técnica comporta muitas variáveis e exige experimentações prévias. Quanto mais próxima a lanterna do objeto iluminado, mais concentrado o facho de luz e maior a impressão de artificialidade.

Zé Paiva conta que com a prática foi aprendendo a construir um mapa mental da cena e um percurso a ser seguido. Ele optou por se aproximar bastante dos objetos iluminados, dando ênfase a alguns aspectos da cena. Uma vez que a escuridão toma conta do ambiente e o disparador é acionado, o percurso realizado pela lanterna será decisivo para o resultado final. No caso de cenas com modelos vivos, a complexidade é ainda maior.

“Para fazer retratos com light painting você só pode passar a lanterna pelo personagem uma vez. Se você voltar a iluminar o rosto, por exemplo, ele vai sair borrado, por mais que a pessoa tente ficar estática, na mesma posição”, diz. Com o tempo ele percebeu que o mais fácil era começar iluminando o personagem, para depois iluminar os objetos da cena. “Passava os primeiros 10 a 15 segundos pintando o personagem com luz e depois podia iluminar a cena com mais calma, podendo passar mais de uma vez a lanterna pelo mesmo lugar”, explica.

Isolina Machado Oliveira, rendeira na Praia da Armação. Foto: Zé Paiva

Isolina Machado Oliveira, rendeira na Praia da Armação. Foto: Zé Paiva

Sempre que possível, o fotógrafo incluía alguma fonte de luz encontrada no local. Foi o caso do retrato do produtor de farinha de mandioca Cassio Andrade, no qual ele incorporou a luz de uma “pomboca”, nome dado localmente a um tipo de candeeiro artesanal.

As sessões de retrato nunca foram além de cinco ou seis cliques, e Zé Paiva relata que cada foto envolvia não somente o tempo de exposição como também o tempo exigido pelo recurso de redução de ruído para longas exposições da câmera digital – ele usou uma DSLR Nikon em conjunto com uma lente zoom 17-35 mm f/2.8. “Era tudo muito demorado. Os personagens retratados, todos eles com mais de 60 anos, ficavam cansados ao longo do processo”, conta.

Durante a realização do ensaio, Zé Paiva não contou com assistente e por isso não tem imagens de making of. Mas um amigo cinegrafista, Felipe Queriquelli, o acompanhou durante a realização de alguns retratos. O material filmado resultou em um curta de sete minutos editado por Rodrigo Ferrari — que conta um pouco do processo criativo e mostra parte da técnica – veja em https://bit.ly/2BvF8dr.

Cassio de Andrade, produtor de farinha de mandioca. Foto: Zé Paiva

Cassio de Andrade, produtor de farinha de mandioca. Foto: Zé Paiva

Na sala de aula

As primeiras experimentações de retrato com light painting nasceram a partir das aulas da professora Denise Camargo, da disciplina de Imagem e Comunicação, que pediu aos alunos da pós-graduação que Zé Paiva fazia (Especialização em Fotografia) que lessem o livro Fotografia: entre documento e arte contemporânea, de André Rouillé. “Uma das coisas que me surpreenderam positivamente nesse curso é que a maioria das disciplinas era teórica. O contato com o livro indicado e com as aulas me abriu uma perspectiva para o lado subjetivo da fotografia”, recorda o fotógrafo.

Como trabalho final, ele produziu um autorretrato em tríptico. Uma das imagens foi feita à maneira de uma foto de estilo ficha policial, frontal e direta, mais objetiva. No outro retrato, ele aparece no escuro, iluminado apenas pela luz de uma lanterna, manejada por ele mesmo. No terceiro, ele ilumina o rosto com a lanterna e se move ao mesmo tempo, dissolvendo seus traços em uma imagem fantasmagórica.

“A intenção era expor essa passagem da objetividade da foto de estilo policial até a completa subjetividade da imagem feita com a lanterna. Uma característica que me atraiu para a técnica de light painting é a construção da luz que depende do percurso que você faz na cena. Então, é uma luz completamente subjetiva, depende da sua performance no momento de iluminar”, ensina Zé Paiva. É nesse ponto que a técnica se encontra com a temática: assim como a atividade dos personagens retratados, a do próprio fotógrafo-iluminador é manual e, por isso, subjetiva, artesanal. O título Iluminados caiu como um luva.

O pintor Rodrigo de Haro, que interferiu na cena criada pelo fotógrafo Zé Paiva

O pintor Rodrigo de Haro, que interferiu na cena criada pelo fotógrafo Zé Paiva

Após ter realizado alguns retratos, Zé Paiva mostrou o trabalho para Denise Camargo, que aceitou atuar como curadora. Ele formatou um projeto de exposição e enviou para alguns editais até ser selecionado como um dos ganhadores do Prêmio Marc Ferrez de Fotografia de 2012, concedido pela Funarte.

Graças à proposta, a série Iluminados teve o poder de criar um envolvimento com a comunidade local. A homenagem feita a personagens marcantes para a cidade foi plenamente retribuída no momento da exposição das fotos, realizada no Museu de Arte de Santa Catarina (MASC), que reuniu 20 retratos e mais o autorretrato tríptico que havia dado origem à ideia inicial da série.

Por fim, a Universidade do Vale do Itajaí (Univali), onde Zé Paiva cursou a pós-graduação, se propôs a encampar o projeto, montando a exposição em uma galeria permanente no campus de Florianópolis, onde tudo começou como uma ideia.

Zaly Folly, professora de yoga e astróloga. Foto: Zé Paiva

Zaly Folly, professora de yoga e astróloga. Foto: Zé Paiva

Autorretrato tríptico do fotógrafo que deu origem à série Iluminados. Foto: Zé Paiva

Autorretrato tríptico do fotógrafo que deu origem à série Iluminados. Foto: Zé Paiva

Matéria publicada originalmente em Fotografe Melhor 270

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