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12-2019

Retrato no DNA

Olhar Global   /  
Nativa da etnia Mursi, da Etiópia, que fica na região nordeste da África. Foto: Hugo Santarém

Nativa da etnia Mursi, da Etiópia, que fica na região nordeste da África. Foto: Hugo Santarém

Do interior do Brasil ao interior da África, o fotógrafo Hugo Santarém criou um projeto inspirado em um exame que mapeou suas origens genéticas

Por Érico Elias

Como retratar e revelar o que está no interior? Foi a partir desse questionamento que Hugo Santarém, fotógrafo baseado em Brasília (DF), lançou-se em um processo de descoberta que começou no Brasil e, a partir de um exame de DNA, foi para a África. O projeto partiu de uma ideia bastante simples: retratar tradições que sobrevivem longe dos grandes centros urbanos.

Primeiro, foram cerca de 5 mil km percorridos pelo interior do Brasil, retratando homens e mulheres. Depois, Santarém vislumbrou um desdobramento para o trabalho ao encomendar uma análise de seu DNA. Uma vez mapeada suas origens, ele viajou para registrar pessoas em dois países africanos: Etiópia e Quênia. Manteve a mesma linha do trabalho iniciado no Brasil, indo para zonas afastadas das grandes cidades. Assim, a proposta evoluiu e ganhou corpo.

O projeto, batizado de Interior, continua em andamento e começa a dar frutos. Santarém foi selecionado para participar da exibição de portfólios do Festival de Fotografia de Tiradentes em 2019 e teve uma das imagens incluída na Affordable Art Fair, em Nova York, Estados Unidos. Algumas galerias de arte demonstraram interesse e o fotógrafo busca agora um parceiro para financiar o projeto.

Adereço bucal de jovem da etnia Mursi que lembra os índios botocudos brasileiros. Foto: Hugo Santarém

Adereço bucal de jovem da etnia Mursi que lembra os índios botocudos brasileiros. Foto: Hugo Santarém

Dimensão afetiva

O projeto que nasceu de um impulso documental ganhou dimensão pessoal e afetiva quando Santarém fez o teste de DNA para saber de onde vinham as raízes de seus ancestrais. O exame indica geograficamente as regiões de origem, conta Santarém. Depois, é possível usar bancos de dados disponíveis na internet, como o GEDMatch, para aferir melhor os resultados.

Na Etiópia, Santarém priorizou tribos do Vale do Rio Omo, onde se encontram algumas das comunidades mais antigas da África. No Quênia, foram visitadas as tribos Maasai, Turkana e Samburu. “O projeto foi criando mais e mais camadas em mim. Naturalmente cheguei à extensão literal e metafórica do registro iniciado em terras brasileiras. Atualmente, busco, por meio dele, estabelecer uma travessia de fronteiras, desbravar o interior dos países indicados no resultado do exame – tarefa que constitui um paralelo de culturas e tradições com as do interior do Brasil. Acabou sendo só uma amostra do que é a miscigenação brasileira, um exemplo dentro do todo”, reflete.

A segunda etapa do projeto foi realizada em 2018 e pré-produzida pelo próprio fotógrafo, que fez as pesquisas necessárias para aproveitar ao máximo as viagens. Para obter o resultado esperado, Santarém passou ao largo de pacotes turísticos e viagens em grupo. Aventurou–se sozinho e optou por contratar guia e motorista locais com carro particular à disposição.

Dessa forma, conseguiu maior flexibilidade e autonomia, além de resolver a necessidade de carregar todo o equipamento necessário para o projeto, como duas cabeças de flash Profoto B1, sombrinhas de diferentes tipos, rebatedores e tripés de luz. Usou DSLRs da Canon, a 5Ds e a 5D Mark IV (além da analógica EOS 30), acompanhadas das objetivas Canon 24-70 mm f/2.8 L II e 70–200 mm f/2.8 L II e as fixas Sigma Art de 35 mm, 50 mm e 85 mm, todas f/1.4 (as duas últimas foram as mais utilizadas).

Uma adolescente da etnia Hamer, tribo que vive no Vale do Rio Omo, no sul da Etiópia. Foto: Hugo Santarém

Uma adolescente da etnia Hamer, tribo que vive no Vale do Rio Omo, no sul da Etiópia. Foto: Hugo Santarém

Combinação de luz natural e artificial

Os retratos da série Interior impressionam pela combinação de luz natural e artificial. É o que ele chama de “iluminação de cinema para retrato”, quando o flash faz um preenchimento de luz sutil, quase imperceptível, mesclando com a luz do sol com mais naturalidade. “Para mim, a luz ajuda a criar o clima e a ressaltar a identidade da pessoa fotografada”, explica Santarém.

Ele realiza as fotos nos locais onde as pessoas vivem e carrega consigo o equipamento necessário à montagem de um pequeno estúdio. Um dos segredos para obter o ambiente de brumas característico de alguns dos retratos da série é começar a clicar o mais cedo possível, quando o sol está se levantando. Como não se trata de atores, mas de pessoas em seus ambientes reais, com suas vidas e rotinas, o fotógrafo tem que se adaptar às condições que encontra e nem sempre é possível começar tão cedo quanto gostaria. “O retrato é uma colaboração. A pessoa está cedendo sua imagem, e aí deve haver muito respeito com o retratado”, ensina.

Na série, Santarém compõe dois tipos de fundo. Nas imagens coloridas, inclui como fundo a paisagem dos lugares em que a fotografia foi feita, criando um elo entre o personagem e o ambiente em que vive. Nas imagens em P&B, toda a força expressiva se concentra no rosto dos retratados. “Fiz essas fotos pensando em preto e branco. Acompanhava na câmera o resultado em P&B e a luz era pensada de forma a dar o melhor contraste. Como fundo, usei a face preta do rebatedor, muros ou fiz dentro das casas, mas me preocupando sempre em manter um padrão”, comenta o fotógrafo.

Uma jovem mãe da etnia Hamer: o colar de metal no pescoço é o sinal de que ela é casada. Foto: Hugo Santarém

Uma jovem mãe da etnia Hamer: o colar de metal no pescoço é o sinal de que ela é casada. Foto: Hugo Santarém

Desdobramentos futuros

Santarém conta que sua atuação na publicidade ensinou a importância do trabalho em equipe, já que os profissionais de produção, figurino e pós-produção trazem olhares que somam no resultado final. Para desenvolver a série Interior não foi diferente. O tratamento das imagens foi realizado em parceria com Ricardo Moreira, e a preocupação foi interferir pouco nas imagens, utilizando apenas correção de cor e contraste na grande maioria dos casos. Assim, a pós-produção garante uma uniformidade ao ensaio.

Até aqui, o projeto foi realizado inteiramente com recursos próprios, pois era algo que ele queria muito fazer, de uma forma profunda e emocional, e não podia depender da morosidade de editais ou busca por patrocínios. “Meti as caras, literalmente. O projeto tem ganhado uma boa repercussão tanto no Brasil como fora, o que me deixa muito feliz com a decisão”, conta. Para seguir em frente, ele está em fase de busca de parceiros e financiamento. Conta a seu favor o fato de já ter imagens marcantes para mostrar.

O fotógrafo até contratou uma assessoria de imprensa, fator que parece ter contribuído para a divulgação do trabalho, que virou notícias em veículos do Brasil e do exterior – divulgadas em seu site. “Minha meta é viajar para os países em que há maior proximidade com o meu DNA, separando por continentes: Portugal, na Europa, e Etiópia, na África.

Nas Américas, há proximidade com povos ameríndios, mas ainda preciso aprofundar a pesquisa para saber de qual região. Em menor quantidade no DNA, há outros países que me despertaram interesse, como Espanha e Argélia”, explica o fotógrafo.

Retrato de adolescente da tribo Samburu com o uso de flash de preenchimento. Foto: Hugo Santarém

Retrato de adolescente da tribo Samburu com o uso de flash de preenchimento. Foto: Hugo Santarém

Importância da pré-produção

Com formação em Publicidade, Hugo Santarém trabalhou como diretor de arte em agências. Em 2006, começou a atuar como fotógrafo de cinema e, em 2010, estudou Fotografia na School of Visual Arts, em Nova York. De volta ao Brasil, especializou-se em Artes Visuais no Senac, em Brasília (DF). Ao migrar da direção de arte à fotografia, carregou consigo toda a bagagem profissional adquirida na publicidade. Atualmente, busca conciliar a atuação comercial com projetos autorais.

Foi desse impulso que nasceu o projeto Interior. E a atuação profissional na publicidade foi fundamental para o sucesso da empreitada, já que conferiu a Santarém a prática de planejar tudo de forma minuciosa antes de sair a campo para fotografar. “A pré-produção é uma das etapas que consomem mais tempo, e a mais importante para o sucesso de um projeto. Há o medo de perder algo, esquecer algo. Não é nada legal viajar para o outro lado do mundo e depois descobrir que você estava muito próximo de algo imperdível e deixou passar”, explica.

No Brasil, em 2016, a primeira etapa foi produzida por Railuane Soares, que trabalhava no estúdio de Santarém. O fotógrafo escolheu locais que representam regionalidade, mas também tradições herdadas de matrizes africanas e europeias, como a comunidade quilombola Lagoa da Pedra, em Tocantins; os boiadeiros que vivem na região de Gilbués, no interior do Piauí; e os gaúchos do Rio Grande do Sul, no extremo sul do país, divisa com o Uruguai. “São comunidades que evidenciam diferentes influências migratórias, cada uma dentro do seu contexto histórico”, explica ele.

Hugo Santarém (sentado, à frente) na Etiópia com guerreiros da etnia Mursi

Hugo Santarém (sentado, à frente) na Etiópia com guerreiros da etnia Mursi

Matéria publicada originalmente em Fotografe Melhor 273

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