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05-2019

O que você precisa saber sobre a lei de direito autoral

Fotojornalistas estão entre os que mais sofrem com imagens sem crédito e uso indevido, sem autorização do autor

Fotojornalistas estão entre os que mais sofrem com imagens sem crédito e uso indevido, sem autorização do autor

Por Sérgio Branco

É impossível atualmente afirmar com exatidão quantas imagens digitais circulam pelo planeta todo santo dia. Um dos efeitos colaterais dessa profusão absurda de pixels e algoritmos é que nunca a lei dos direitos autorais no Brasil e no mundo foi tão desprezada como nesses tempos de redes sociais e WhatsApp. Com 20 anos completados em fevereiro de 2018, a lei brasileira é uma das mais avançadas do mundo. No entanto, isso não impede que fotos saiam sem o crédito do autor, sejam usadas sem autorização do fotógrafo ou apropriadas por terceiros, para ficar nos casos mais comuns. E está cada vez mais difícil descobrir e controlar essas transgressões.

Advogados especializados como Marcelo Pretto e Danielle Faro têm tido muito trabalho. Eles concordam em quase tudo, menos em um ponto: Danielle acredita que do jeito que as coisas vão não haverá mais lei de direito autoral no futuro. Pretto discorda. Para ele, a propriedade intelectual jamais deixará de ser um direito do ser humano. Mas, enquanto o futuro não chega, o que eles querem é ganhar todas as causas que defendem. E são muitas.

Pretto explica que pela Lei de Direito Autoral (n0 6.910, de 19 de fevereiro de 1998), o fotógrafo é considerado um artista e a fotografia, uma obra intelectual protegida. A lei define claramente quais os direitos morais e patrimoniais do fotógrafo-autor, bem como as regras para uso da obra e as punições para quem violar esses direitos. Não houve nenhuma mudança na lei, desde sua promulgação, no que se refere à fotografia. Mas foram criadas várias jurisprudências, ou seja, decisões jurídicas que são repetidas em casos parecidos, o que de certa forma padronizam e agilizam os processos.

Enquanto essa relação era apenas com o mercado editorial e publicitário, havia descumprimento da lei, mas era mais fácil de descobrir. Geralmente eram infrações como ausência de crédito, reutilização de foto sem autorização, manipulação digital e contratos abusivos. Na internet, o problema mais grave era a pirataria de imagens, algumas mais por falta de conhecimento sobre direito autoral do que por má-fé. Com o crescimento das redes sociais e outros tipos de mídia, como o WhatsApp, o controle passou a ficar cada vez mais difícil. Com ou sem má-fé, o desrespeito à lei se multiplicou.

Marcelo Pretto e seu lado fotógrafo: problema de crédito com imagem feita com o grupo Racionais MC

Marcelo Pretto e seu lado fotógrafo: problema de crédito com imagem feita com o grupo Racionais MC

Em meados de maio de 2018, o próprio Instagram desativou as contas de blogueiros famosos, como Hugo Gloss, Tia Crey e Nana Rude, entre outros, por uso indevido de imagens. A suspensão se deu por reclamação de autores e agências de fotografia, que se queixaram do uso de imagens sem contrato ou autorização e com falta de créditos. “Esse uso indevido vem se tornando prática comum. E as pessoas estão se esquecendo de incluir o WhatsApp, que hoje é o meio que mais faz circular imagens sem autorização e sem crédito”, observa o advogado Marcelo Pretto.

Some-se a isso o fato de que todo mundo com um smartphone na mão vira fotógrafo. Como saber quem é profissional e está em busca de seus direitos de autor e quem é um instagramer sem compromisso e não está nem aí para o que fizerem com suas imagens? Mas o fato é que a lei de direito autoral é abrangente a todos os tipos de obras artísticas, como pinturas, esculturas, ilustrações, composições musicais, obras audiovisuais, textos literários e trabalhos científicos.

Ou seja, de acordo com a lei, o autor (fotógrafo) tem o direito moral e o direito patrimonial sobre a obra (foto) que criou. Faz parte do direito moral do fotógrafo ter o nome ou pseudônimo sempre indicado, de forma legível, na utilização da foto em qualquer tipo de mídia, impressa ou virtual. A reprodução da foto também deve estar fiel ao original, a menos que o autor autorize alguma modificação. Não podem ser aplicados cortes ou qualquer tipo de manipulação digital sem o consentimento do fotógrafo, que pode se opor à alteração.

Com base no direito moral, o fotógrafo ainda pode retirar a foto de circulação caso venha a se arrepender de sua criação e suspender o uso da foto, mesmo que já autorizado, se considerar que a utilização possa atentar contra sua reputação.

São direitos de caráter moral, inalienáveis e irrenunciáveis, ou seja, não podem ser “transferidos” para outra pessoa e valem por tempo indeterminado. Dessa forma, ao rigor da lei, após a morte do autor, a obra se mantém intacta e só pode ser reproduzida na sua forma original.

Direito patrimonial

O fotógrafo não pode ceder os direitos morais de sua criação, mas sim os direitos patrimoniais, passando o direito de reprodução da obra para o comprador de forma definitiva ou apenas temporária, para uso em uma determinada publicação (em qualquer tipo de mídia), campanha publicitária ou outra finalidade. Essa cessão do direito de reprodução deve ser feita sempre por escrito através de um CCDA, o Contrato de Cessão de Direito Autoral.

No CCDA, assinado pelo fotógrafo e pelo comprador, é estipulado com detalhes quais são as fotos, o tipo de uso e o prazo da utilização. É a prova de que o fotógrafo cedeu o direito de reprodução e vale como uma segurança para o comprador. Nele, a forma como a imagem será utilizada deve ser descrita claramente para não haver risco de exploração de maneira diversa.

O direito patrimonial do fotógrafo, ao contrário do direito moral, tem prazo de validade: 70 anos a contar do ano seguinte à morte do autor. Os herdeiros mantêm os direitos patrimoniais até o final do período. Depois, a imagem cai em domínio público. Isso, por exemplo, pode ser aplicado às fotografias do carioca (filho de franceses) Marc Ferrez, que morreu em 1923, e cujo acervo está nas mãos do Instituto Moreira Salles (IMS).

Qualquer que seja a área do fotógrafo, as imagens que produz são consideradas obras com direitos morais e patrimoniais

Qualquer que seja a área do fotógrafo, as imagens que produz são consideradas obras com direitos morais e patrimoniais

Crédito pra quê?

A ausência de crédito na foto é, de longe, o principal motivo das ações movidas por fotógrafos de vários setores. No caso de fotojornalistas, Marcos Alves, presidente da Associação dos Repórteres Fotográficos e Cinematográficos no Estado de São Paulo (Arfoc-SP), acredita que há certa má vontade de editores, mesmo da grande imprensa, em cumprir a lei, já que é obrigatório divulgar o nome do autor ao lado da obra. “Nas redes sociais, então, nem se fale. Quase ninguém dá crédito quando a foto sai na página de Facebook, de jornal ou revista. Mesmo em home pages é difícil ver. Acho que falta consciência também do fotógrafo ao não exigir que se cumpra a lei”, afirma. Um de seus planos, inclusive, é promover um seminário sobre direitos autorais com os associados para deixar bem claro como funciona a lei e como eles podem proteger seus direitos de autor.

O próprio Marcelo Pretto, 45 anos, que também é fotógrafo profissional e professor de Fotografia, já se viu diante de um caso em que não creditaram uma foto de sua autoria na revista de bordo da companhia área Azul. “Era uma foto do grupo Racionais MC. Ver minha foto publicada sem crédito foi como um soco no estômago. Entrei em contato com a redação da revista e acabamos fazendo um acordo. Não precisei processá-los”, comenta ele, que é autor do livro Direito Autoral para Fotógrafos (iPhoto Editora).

E que tal fazer todas as fotos de um livro de culinária (52 ao todo), com receitas de uma chef, e não creditarem o trabalho fotográfico? Foi o que ocorreu com um renomado profissional da área de gastronomia, solenemente ignorado na edição do livro. “Processamos os autores e a editora por esse desrespeito com o autor. Já ganhamos em primeira instância”, diz Pretto, sem revelar o nome do cliente, que pediu anonimato.

A advogada Danielle Faro, 45 anos, presta consultoria na área de propriedade intelectual (direitos autorais e marcas e patentes) para várias agências de publicidade e lembra que, no caso de fotos de campanhas publicitárias, o crédito não é só do fotógrafo. “Uma obra publicitária é mais complexa. É um trabalho em equipe, pois há o diretor e o redator, que formam a dupla de criação; e cabe ao fotógrafo executar o layout e a um manipulador de imagens fazer ajustes quando necessário. Então, a obra tem vários autores e isso precisa ficar bem documentado em contrato”, lembra ela.

Essa polêmica de autoria atingiu inclusive o prestigiado Prêmio Conrado Wessel em 2004. O fotógrafo Ricardo Cunha foi o vencedor da categora Publicidade com a obra Irado‚ feita para uma campanha publicitária. Contudo, o editor de imagens Leonardo Candian contestou a autoria‚ alegando ter sido ele o maior responsável pela concepção da foto. O caso foi parar na Justiça, já que o prêmio era de R$ 80 mil. Isso levou os organizadores do concurso a mudar o regulamento do prêmio, dando mais ênfase ao trabalho do fotógrafo. Mesmo assim, o Conrado Wessel, para evitar mais polêmicas, acabou com o prêmio de foto publicitária em 2010, passando a premiar apenas ensaios.

Apropriação

Virou moda no mundo da arte o termo “apropriação” e o artista panamenho Richard Prince é um ícone dessa “re-fotografia, que se trata de uma técnica para roubar (piratear) imagens que já existem estimulando-as em vez de copiar, gerindo–as em vez de citar”, como o próprio Prince escreveu em 1977 para definir sua arte. Processado em inúmeras ocasiões, às vezes ganhando, às vezes perdendo, ele não está nem aí para direito autoral.

Em 2014, ele “se apropriou” de várias imagens veiculadas no Instagram e promoveu uma exposição na Gagosian Gallery em Nova York, EUA, sendo que sua intervenção foi ampliá-las e acrescentar comentários às imagens, mais nada – e chegaram a ser vendidas por dezenas de milhares de dólares. A russa Doe Deede, integrante do coletivo burlesco SuicideGirls e uma das pessoas das fotos pirateadas do Instagram, ficou surpresa quando descobriu que a imagem em que aparece, sem que tenha dado permissão de uso, foi vendida por US$ 90 mil. Porém, Deede decidiu não processar o artista.

Prince se defende usando o escudo da arte, mas muita gente simplesmente se “apropria” porque acha que direito autoral não tem lei ou finge desconhecê-la. Fotos jornalísticas utilizadas com fins publicitários ou comerciais vêm em segundo lugar nos casos recorrentes no Brasil. Em terceiro estão os casos de manipulação sem a autorização do fotógrafo, como fotos coloridas alteradas para o P&B, cortes e alterações de cores.

Foto de manifestações feita por Léo Pinheiro foi usada sem autorização em propaganda do PSB: fotógrafo ganhou a causa

Foto de manifestações feita por Léo Pinheiro foi usada sem autorização em propaganda do PSB: fotógrafo ganhou a causa

O fotojornalista Léo Pinheiro ganhou uma causa contra o PSB (Partido Socialista Brasileiro) por uso indevido de uma imagem de sua autoria em propaganda política. “As pessoas acham que é simplesmente pegar uma foto na internet e fazer o uso que lhes der na cabeça. Não é assim que funciona. Existe lei e ela tem de ser cumprida”, diz Pinheiro sobre a foto feita durante as manifestações de 2013 em São Paulo (SP).

Ele também teve um contratempo com o jogador de futebol Guilherme Arana, ex-Corinthians. “O Arana pegou uma foto dele feita por mim que estava no site Gazeta Press e colocou no Instagram sem autorização e sem crédito. Acionei meu advogado e fizemos um acordo. Ele me pagou pela foto com base na tabela da Arfoc e deu crédito. Ele e outros caras famosos ganham dinheiro com o Instagram e acham que podem se apropriar do trabalho da gente”, reclama Léo.

Segundo Marcos Alves, têm ocorrido muitos casos envolvendo falta de crédito de autorização de publicação no Instagram. “Estamos de olho e incentivamos nossos associados a buscarem seus direitos na justiça. Muita gente acha que é só dar um Google, copiar e colar. Isso tem de diminuir, já que acabar é quase impossível nos dias de hoje”, comenta o presidente da Arfoc-SP.

O jornalista e fotógrafo Tales Azzi, editor da revista Viaje Mais, descobriu que uma foto de sua autoria estava sendo usada de várias maneiras em Itacaré (BA) e, depois, pesquisando no Google, descobriu que a mesma imagem estava sendo usada sem sua autorização em vários sites mundo afora – veja no box abaixo o depoimento dele.

Fotógrafo de natureza e viagens, André Dib teve uma grande surpresa quando recebeu o carnê de IPTU da cidade onde mora, Alto Paraíso de Goiás (GO): na capa do documento havia uma foto de sua autoria feita na Chapada dos Veadeiros. Dib protestou via Facebook e muitas pessoas alegaram que ele não deveria reclamar, e sim se sentir prestigiado. Para evitar polêmicas na pequena cidade, o fotógrafo comunicou a Prefeitura da “apropriação” indevida e pediu para que isso não se repetisse mais.

Falso fotógrafo

Retrato falso de Eduardo Martins: falso fotógrafo roubou e apenas inverteu imagens para vender

Retrato falso de Eduardo Martins: falso fotógrafo roubou e apenas inverteu imagens para vender

São tantos os casos de uso de imagens sem autorização nem crédito para o autor que daria uma edição inteira de Fotografe. Mas, e quando além de se apropriar de fotos de terceiros a pessoa cria uma identidade falsa, engana a maior agência de fotografia do mundo, torna-se famosa no Instagram e no Facebook e até dá entrevista para a agência BBC? Esse é Eduardo Martins, o fotógrafo de guerra da ONU, jovem paulistano de 32 anos, loiro, bonitão e surfista nas horas vagas que arrancava suspiro das fãs pela bravura ao cobrir conflitos na Somália, na Síria e no Iraque. Só que não.

Eduardo Martins nunca existiu. A própria BBC descobriu a fraude, contou a verdadeira história e desculpou–se com seus leitores. Muitas fotos de Martins eram do americano Daniel C. Britt, só que invertidas e com pequenas alterações. O malandro revendia o trabalho tanto à gigante Getty Images quanto à agência de fotógrafos independentes Zuma Photo. E as imagens roubadas foram publicadas em grandes jornais mundo afora sem que ninguém desconfiasse de nada.

A cara de pau de Martins era tanta que ele trocava as legendas. A foto de um garoto feita no Iraque por Britt foi vendida pelo falsário como sendo de “um menino palestino gritando depois de um confronto com as forças de Israel”. A Getty retirou do ar todo material do “colaborador” enquanto prometia melhorar seu controle interno.

Quando ficou sabendo que sua (falsa) história ruíra, Martins cortou seu contato com o mundo, saindo do WhatsApp e das redes sociais. Ninguém nunca viu o malandro, mas a imagem (falsa) que ficou para a posteridade foi a do surfista britânico Max Hepworth-Povey, de quem roubou retratos publicados nas redes sociais como sendo ele. O mistério permanece: quem realmente é Eduardo Martins?

Pilantra-mor no roubo de direitos autorais e de imagem, Martins pode ser visto como a representação de tempos em que mesmo grandes empresas, com todos os seus controles internos e códigos de ética, são facilmente enganadas. Por essas e outras é que a advogada Danielle Faro acredita que no futuro o direito autoral será uma mera lembrança. “Já há casos nos Estados Unidos e na Europa em que juízes estão considerando que uma vez que a imagem vá parar na internet, o autor perde o direito autoral. Passam a entender que a obra tem função social, dentro do conceito de common law, ou seja, direito comum, eliminando o direito autoral e patrimonial sobre a obra. É preocupante, mas está cada vez mais complexo controlar isso”, diz ela.

Por seu lado, o especialista Marcelo Pretto crê que a lei evoluirá, acompanhando os novos tempos, pois, segundo ele, a obra intelectual não pode perder proteção. “Não se trata apenas de fotografia, mas de toda criação artística e intelectual do ser humano”, defende. O futuro dirá.

Imagem aérea da Prainha, em Itacaré, de Tales Azzi, foi usada sem o conhecimento dele em várias situações na cidade baiana

Imagem aérea da Prainha, em Itacaré, de Tales Azzi, foi usada sem o conhecimento dele em várias situações na cidade baiana

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