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09-2019

Nova geração sustenta a volta do filme

Olhar Global   /  
Foto feita com filme que faz parte do trabalho autoral da jovem fotógrafa gaúcha Tuane Eggers

Foto feita com filme que faz parte do trabalho autoral da jovem fotógrafa gaúcha Tuane Eggers

Jovens fotógrafos que não viveram a era analógica resgatam a sensação de não ver o resultado na hora enquanto clássicos como o Ektachrome são relançados num nicho de mercado que tem consumidores fiéis

Por Sérgio Branco

O P&B jamais se entregou. Continuou resistindo na penumbra do quarto escuro amparado pela luz vermelha. O negativo colorido, à beira da morte, ressuscitou e vem ganhando força a cada dia. O diapositivo (também chamado de slide ou cromo), desenganado, recebeu até extrema-unção. Mas não passou dessa para melhor. Foi recentemente notícia mundial quando a Kodak Alaris anunciou a volta do famoso Ektachrome. O fato é que a era digital quase matou o filme. Ele ficou moribundo, mais pra lá do que pra cá, mas não entregou os pontos. De uns tempos para cá virou cult. Tem feito a cabeça de jovens fotógrafos e arrancado suspiros dos mais velhos, saudosos do tempo em que não era possível ver a imagem logo após apertar o botão de disparo da câmera.

Se algum tempo atrás falar em fotografia analógica pareceria coisa de velho saudosista, atualmente é papo de uma parcela de jovens fotógrafos antenados, que preferem os grãos aos pixels, mas transitam entre os dois mundos sem radicalismos. “Comecei com câmera digital, mas ao longo do tempo me encantei com o universo analógico. Tenho uma Canon EOS 300 e uso negativo colorido”, diz a gaúcha Tuane Eggers, 28 anos, adepta do analógico desde os 23. Já o pernambucano Bernardo Teshima, 24 anos, trocou uma compacta digital que ganhou aos 18 anos por algo mais desafiador: uma antiga Rolleiflex. “Fui desvendando o funcionamento da câmera e me apaixonei pela fotografia analógica. Fiz um curso básico de fotografia e o resto aprendi sozinho, pesquisando na internet e perguntando para fotógrafos mais velhos”, conta.

Se para Tuane e Teshima o filme e a câmera analógica têm uma pegada mais autoral, já que eles também trabalham com o digital, para o mineiro Hick Duarte, 27 anos, o filme foi usado inclusive em um ensaio de moda, área de atuação dele, para a grife Cotton Project. “Como a ideia era fotografar um grupo de jovens de modo a parecer um registro de viagem, sugeri o filme porque acho que ele gera textura e cores que têm relação com a marca”, informa Duarte, que escolheu os negativos coloridos Kodak Portra 400 e 160 em 35 mm e 120 mm.

André Corrêa, 44 anos, carioca radicado em São Paulo (SP), lembra que o primeiro grande impulso para a volta do filme foi a moda da lomografia, baseada em câmeras automáticas de baixo custo, que ganhou força em 2010 quando a marca Lomo lançou três modelos na Photokina, em Colônia, Alemanha, a maior feira de fotografia do mundo. “Comprei uma Diana numa viagem ao Chile e daí em diante fui em busca de câmeras antigas e de guias e manuais de técnicas analógicas”, afirma.

Nessa época, desempregado, Corrêa criou o site Queimando o Filme, para não ficar sem fazer nada. Para surpresa dele, descobriu que havia uma demanda reprimida enorme por conteúdo sobre fotografia analógica. “Toquei o site a todo vapor em 2011 e 2012, diminuí o ritmo a partir de 2014, quando me tornei pai”, explica Corrêa. Ele se envolveu tanto com o analógico que chegou até a revelar negativo colorido (processo C-41) de forma artesanal. “Preto e branco é bem mais fácil porque exige menos espaço e menos estrutura. Mas revelação a cor também é possível de forma amadora”, assegura.

imagem de ensaio de moda realizado por Hick Duarte com filme negativo colorido

imagem de ensaio de moda realizado por Hick Duarte com filme negativo colorido

Fenômeno mundial
O interesse crescente pelo filme é um fenômeno mundial, segundo Ana Sorolla, Business Manager da Kodak Alaris no Brasil. Houve tanta demanda em 2017 que a empresa, com sede em Hemel Hempsteads, nos arredores de Londres, Inglaterra, não conseguiu atender a todos os pedidos. “Aqui no Brasil, fizemos uma experiência com profissionais durante um congresso de fotografia de casamento em São Paulo e o interesse pelos nossos filmes foi acima do esperado”, diz Ana.

Vale explicar que a Kodak Alaris compartilha a marca com a antiga Eastman Kodak, que pediu concordata em 2012. Uma negociação milionária entre o Kodak Pension Plan (KPP), do Reino Unido, e a empresa americana levou a um acordo que fez surgir a Kodak Alaris. Os filmes são ainda fabricados em Rochester, Estado de Nova York, pela Eastman sob encomenda da Kodak Alaris – que também vende papéis, químicos, quiosques de impressão e suprimentos fotográficos, além de ter divisão de software e hardware para gerenciamento de imagens digitais.

“Vendemos no Brasil toda nossa gama de filmes negativos coloridos e preto e branco, como o Portra, o Ektar, o Tri-X, o T-Max e outros mais populares”, diz Ana. As vendas atingem cerca de 10 mil unidades por mês. Ela informa que a empresa está preparando para breve o lançamento do Ektachrome no País. E, como se trata de um cromo, com revelação no processo E-6, a empresa está fazendo um levantamento de todos os laboratórios que podem atender a fotógrafos que se interessarem pela novidade vinda do passado. Alguns já são conhecidos, como Foto G e Capovilla, em São Paulo (SP); Speed Lab e Digitall Photo, no Rio de Janeiro (RJ); e Ticcolor, em Curitiba (PR).

Rosângela Andrade, que dá aulas de laboratório P&B para jovens que só conhecem a fotografia digital e se interessam pelo processo analógico

Rosângela Andrade, que dá aulas de laboratório P&B para jovens que só conhecem a fotografia digital e se interessam pelo processo analógico

Se para quem fabrica filmes a percepção de que há uma nova geração de fotógrafos querendo voltar ao analógico, para quem vende ao consumidor, isso é nítido: “Tenho vendido bastante filme aqui. Os P&B sempre saíram bem, principalmente os da Ilford, por causa das escolas de fotografia. Mas tem uma moçada que procura o negativo colorido. É muita gente que cresceu sem ter contato com o analógico e quer descobrir como é. E tem os que querem filmes vencidos para conseguir algum efeito na foto”, informa Octavio Yoshiga, diretor da Angel Foto, tradicional loja de equipamentos do centro de São Paulo.

Yoshiga compra os filmes Kodak e Fuji da distribuidora Revela Photo Digital, que também tem lojas de revelação em São Paulo, São Vicente (SP) e Vitória (ES). “Chegamos a vender cerca de 500 filmes por mês em São Paulo, entre os que temos aqui na loja e os que distribuímos para outros”, calcula Miguel Alves, gerente da loja paulistana. Entre os que a Revela tem disponível está o negativo P&B Neopan Across 100, que a Fuji anunciou que descontinuaria em abril deste ano e, semanas atrás, soltou um comunicado informando que estava revendo a decisão depois de uma pressão de fotógrafos de várias partes do mundo.

bobinas do slide Ektachrome, que será relançado no Brasil pela Kodak Alaris. Foto: Shutterstock

bobinas do slide Ektachrome, que será relançado no Brasil pela Kodak Alaris. Foto: Shutterstock

Aulas de laboratório
Rosângela Andrade é veterana na arte de revelar e ampliar em P&B. No Imágicas, sua empresa, ela sempre atendeu grandes fotógrafos, como Cristiano Mascaro, German Lorca, Pedro Martinelli, Tiago Santana, Edd Viggiani, para citar alguns. Outra de suas atividades é dar aulas de laboratório P&B no Clube Analógico, que ela criou com o apoio do amigo Bruno Caruso, e em unidades do Sesc paulistano.

Ela explica que, por mais que o mercado de fotografia analógica tenha diminuído, nunca teve problemas para encontrar filmes, papéis e químicos, que compra diretamente da Marinho Comércio, distribuidor dos produtos da britânica Ilford no Brasil. O que mais chama a atenção de Rosângela é a quantidade de jovens que procura seus cursos como uma alternativa ao processo digital. “Buscam uma maneira mais contemplativa de observar o mundo e produzir imagens. Acredito que é um pouco de cansaço com os exageros envolvidos na fotografia digital”, comenta a professora.

Negativo colorido sendo manuseado e, abaixo, slides em uma mesa de luz para edição. Foto: Shutterstock

Negativo colorido sendo manuseado e, abaixo, slides em uma mesa de luz para edição. Foto: Shutterstock

Sem ver antes
A gaúcha Tuane Eggers, por exemplo, gosta de fazer dupla exposição com os filmes que coloca na câmera. Ela explica a razão: “É algo que imagino, mas nunca sei exatamente como vai ficar. Gosto muito desse tom de surpresa que tem a fotografia analógica”.

O pernambucano Bernardo Teshima não só adora fotografar com filmes (ele elege o Fuji Neopan Across 100 como o favorito) como é louco por câmeras analógicas. Depois da Rolleiflex que ganhou da madrasta, comprou uma Pentax K1000, em seguida, uma Pentax Spotimatic, uma Nikon FM, uma Konica Auto S2, uma médio formato Pentax 67… Especializou-se em restaurar e adaptar câmeras antigas. Recentemente conseguiu transformar uma antiga Yashica D em câmera para usar filmes instantâneos Fuji Instax. Deu à criação o nome de “Teshimaflex”.

Criou até um evento em Recife (PE), o Passeio Analógico, com o objetivo de reunir pessoas com o mesmo interesse para conversar e sair para fotografar juntos. O último foi em 2015, pois Teshima teve que parar de organizá-lo por questões pessoais e profissionais. Mas mantém no Facebook um grupo intitulado Pernambuco Analógico, com cerca de 2 mil membros. “Estou pensando em retomar o passeio em breve”, afirma.

O mineiro Hick Duarte comprou uma Nikon FM 2 com lente 50 mm f/1.4 durante uma viagem a Barcelona, Espanha, e logo depois adquiriu uma Contax G2 com lentes 28, 45 e 90 mm. A partir daí a fotografia analógica tem disputado espaço no seu trabalho com o digital. “Quando comecei a fotografar com filme, ficava inseguro por não poder checar o resultado na hora. Havia também uma certa ansiedade, que foi desaparecendo à medida que criei uma relação mais íntima com a câmera”, explica.

Retrato feito por Bernardo Teshima, que, aos 24 anos, é apaixonado pela fotografia analógica

Retrato feito por Bernardo Teshima, que, aos 24 anos, é apaixonado pela fotografia analógica

Para ele, o fato de a fotografia analógica obrigá-lo a pensar no processo antes de sair clicando o faz cuidar mais da composição antes de apertar o botão disparador. “Hoje consigo entender bem o processo e sei até aonde dá para chegar. Os meus trabalhos autorais faço apenas com filme”, diz ele, que mora em São Paulo e revela seus filmes na Color Foto Ferrara, no centro da cidade.

O carioca André Corrêa afirma que a parte que mais o satisfaz é escolher o filme, a câmera e a lente. Ele tenta sempre ter em casa uma variedade de filmes de coloridos e P&B, de ISOs e formatos diferentes (35, 120 e 220 mm). “Curto ficar pensando na munição que vou levar. No digital não tem isso. Analógico é pensar antes no que você vai fazer. Digital é clicar primeiro e pensar depois”, comenta. E, para quem apostava que o filme estava ferido de morte, vida longa a ele.

*Com reportagem de Mário Fittipaldi

Rosângela Andrade no laboratório: ela criou o Clube Analógico em São Paulo

Rosângela Andrade no laboratório: ela criou o Clube Analógico em São Paulo

Matéria publicada originalmente em Fotografe Melhor 265 

 

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